Um livro forte que aborda inúmeros assuntos pertinentes ao retratar com realismo e detalhes cruéis a Índia dos anos 50; um país machista, sexista e regado por desigualdade social. Mas é exatamente nesse cenário caótico que surge uma personagem inesquecível, Lakshmi; uma mulher que consegue conquistar muito em um país repleto de discriminação que a todo instante inferioriza o sexo feminino.

“Era isso que eu queria: uma vida que pudesse me realizar de uma maneira que filhos não poderiam.”
Nome: A Pintora de Henna
Autor: Alka Joshi
Páginas: 350
Editora: Edição exclusiva da Tag Inéditos do mês de Janeiro de 2022
Sinopse: Lakshmi fugiu de seu marido aos dezesseis anos após não aguentar mais ser humilhada e espancada por ele. Sozinha em uma cidade grande, a garota passa a pintar henna em senhoras de castas superiores e a oferecer sachês de fertilidade ou interrupção de gravidez, para conseguir se sustentar. É assim que 13 anos se passam e Lakshmi se vê em um momento repleto de prosperidade, parecia que tudo estava perfeitamente bem em sua vida… Até que seu ex-marido a encontra. Seria um choque por si só imaginar que ele havia corrido atrás dela depois de tanto tempo, mas o pior ainda estava por vir, afinal ele trouxe uma menina com ele; a irmã mais nova que Lakshmi nunca soube que tinha.
É assim que a vida da pintora de henna vira de cabeça para baixo ao ter que se adaptar a criação de uma criança de 13 anos e ao mesmo tempo aceitar os subornos de seu ex-marido para que ele não conte a ninguém que ela fugiu dele.
“A Pintora de Henna” é aquele tipo de livro que causa mistos de sentimentos ao leitor, sejam eles bons ou maus. Fato é, que esse é um livro inesquecível e que além de abordar diversos assuntos pertinentes ao longo de suas páginas, também emociona e enraivece por apresentar personagens e situações distintas que fazem com que o leitor reflita sobre diversos aspectos indignos evidenciados da narrativa.
“Eu nunca teria imaginado que, um dia, seria livre para ir e vir, para negociar os termos da minha vida.”
A construção emocional de cada um dos personagens que compõe a obra é perfeita. Seja o desenvolvimento primoroso dos protagonistas, ou mesmo a composição altamente delicada de cada coadjuvante que faz a trama se mover. Todos os personagens são absurdamente humanos e suscetíveis a erros e acertos. Sem dúvida, o ponto que faz com que a narrativa se desenvolva de forma primorosa.
A ambientação da obra também é impecável. Aqui, somos apresentados a Índia dos anos 50, um país regado de machismo e muita desigualdade social que é evidenciada em falas preconceituosas emitidas por personagens de castas elevadas e através da impunidade que ocorre nos crimes e atitudes desumanas empregadas pela elite indiana.
A pobreza rega cada uma das páginas desse livro.
Índia e Desigualdade Social
Porque apesar de ser um país dotado de uma cultura singular, repleta de belezas inimagináveis; a Índia é um país que sofre com a pobreza, o preconceito e a desigualdade social. Problemas que são ocasionados principalmente devido ao sistema de castas que impera na nação.
Em “A Pintora de Henna” o leitor consegue vislumbrar toda a desigualdade social e econômica que impera no país; seja pelo fato dos protagonistas sofrerem preconceito e serem constantemente humilhados por pessoas de castas superiores, ou mesmo pelo fato de que os crimes e atitudes desumanas perpetrados pela elite indiana não detenham nenhum tipo de punição.
“Na Índia não existia vergonha individual. A humilhação se estendia, tão facilmente quanto óleo em papel de cera, para toda a família, até mesmo primos, tios, tias, sobrinhas e sobrinhos distantes.”
E além de toda essa desigualdade, seja social ou econômica, a trama ainda apresenta o lado machista e sexista da Índia. Um país que é acima de tudo opressor em relação ao sexo feminino, delegando a mulher a função de se casar, ser uma boa esposa e gerar um futuro herdeiro, progênito homem é claro, porque filhas mulheres não são bem recebidas em um seio familiar.
Toda essa discriminação de gênero é bastante evidente na narrativa quando somos apresentados a mulheres que querem abortar as filhas que estão em seu ventre ou mesmo durante processos de adoção, quando crianças do sexo feminino são rejeitadas pelas famílias adotantes.
E a protagonista da trama, Lakshmi, sofre bastante com todo o preconceito que caí sobre si pelo simples fato de ser mulher e de ter abandonado seu marido. Afinal, abandonar a família é errado através do povo indiano e suas crenças.
Casamentos e suas consequências
Nesse ponto, entramos na questão dos casamentos arranjados e como eles podem refletir em uma relação abusiva e sem amor.
Em “A Pintora de Henna”, Lakshmi é o exemplo perfeito do que um casamento arranjado (algo comum na Índia para a preservação das castas) pode fazer em um relacionamento. Afinal, são os parentes que arrumam o matrimônio, com o intuito de não manchar o nome da família caso ocorra a união de uma casta superior com uma inferior. E o casamento arranjado é uma das piores decisões que podem ser tomadas, visto que muitas coisas podem ocorrer em uma relação comprada.
“Durante anos eu havia imaginado o que faria se visse Hari de novo. Eu bateria nele com os punhos. Daria um tapa em sua cara com a mão aberta. Eu o chutaria. Por todas as vezes que ele havia me machucado, todas as vezes que me fizera sentir diminuída. No entanto, quando o encarei pela primeira vez em treze anos, senti mais pena que raiva.”
Lakshmi foge de um casamento abusivo, uma relação em que era constantemente espancada por seu marido que se sentia frustrado por ela não gerar um filho. A moça sabia que poderia ser morta e sem alternativa fugiu de sua casa, indo morar em uma outra cidade, começando do zero e aprendendo a profissão de pintar henna em senhoras ricas. Mas a henna não lhe deu sustento suficiente, e a moça teve de vender sachês que auxiliavam na fertilização feminina ou tiravam um bebe indesejado.
Fato é, que apesar de a personagem ter se livrado do casamento abusivo, ela não pode se livrar de ser uma mulher. E na Índia dos anos 50, uma mulher que abandonava sua família era tão suja quanto as castas inferiores.
É devido a isso que Lakshmi mente e conta que foi abandonada pelo marido, afinal um homem abandonar a mulher é aceitável e até digno de pena, mas uma mulher fugir do marido porque apanhava dele é motivo de rejeição total.
Relação de irmãs
Mas a fuga de Lakshmi de seu casamento abusivo a fez perder muitas coisas em sua vida, como por exemplo o nascimento de sua irmã mais nova que ela sequer fazia ideia de que existia. Além disso, a moça também descobre que seus pais faleceram e que eles não haviam a perdoado por ter abandonado sua casa.
“Uma vez casada a mulher era propriedade do marido. Esposas infelizes não podiam simplesmente voltar para a casa dos pais, esperando compaixão. Algumas famílias até mudavam o primeiro nome da nora assim que ela entrava para o seu círculo, como se o seu eu anterior nunca tivesse existido.”
Esse é um dos pontos altos abordados em “A Pintora de Henna”, toda a relação entre irmãs que nunca se viram na vida e que agora eram a aliança e o alicerce uma da outra. Devo exaltar que essa relação conturbada é muito bem retratada pela autora, Alka Joshi, que evidencia todas as complicações que é se ver como a tutora de uma criança de uma hora para outra.
Aqui, temos uma relação que vai desde o afeto e admiração da mais nova pela mais velha, até a rebeldia ocasionada pelas mudanças corporais de uma adolescência que revela aquele súbito e desesperado primeiro amor. Fato é, que ambas as personagens, Lakshmi e Radha, aprendem muito uma com a outra, seja por serem tão diferentes entre si ou por terem de amadurecer de forma apressada.
Porque tanto Lakshmi quanto Radha necessitam amadurecer. Uma como mulher e a outra como irmã mais velha.
Transição infância e adolescência
E todo esse amadurecimento é evidenciado através das nuances causadas pela puberdade; pela transição da infância para a adolescência.
Confesso que se teve uma coisa que me irritou em “A Pintora de Henna” foi Radha e toda a sua rebeldia ocasionada pela puberdade. A personagem se transformou de uma garota meiga que nutria uma profunda admiração por sua irmã mais velha em uma garota detestável, respondona, mal agradecida e bastante egoísta.
“As mulheres que eu conhecia sempre queriam confessar sua culpa, mas seria mais fácil para mim e para elas não fazer de mim uma confidente.”
Fato é, que apesar de ter me irritado com Radha em quase toda a trama, eu compreendi sua condição, afinal passei pelo mesmo quando a puberdade me alcançou e eu tive minha experiência com o primeiro amor. É doloroso e bastante cruel, ainda mais quando não existe uma conversa ou um auxílio adequado. Radha estava confusa, com medo e estava apaixonada, e mesmo que suas atitudes não possam ser justificáveis, elas são no mínimo compreensíveis.
Ademais, por mais que ela tivesse me irritado em boa parte da trama, eu ainda sentia aquela vontade de que tudo no final desse certo para ela. Afinal, era apenas uma menina que não fazia ideia das mudanças que estavam ocorrendo em sua mente e em seu corpo, nesse ponto, a culpa pode sim ser atribuída a Lakshmi que não conseguiu perceber as confusões de sua irmã para poder ajudá-la a se entender.
Aborto e Hena
E “A Pintora de Henna” aborda com crueza e delicadeza um tema que é considerado polêmico por muitas pessoas; o aborto.
E quando digo que este é um tema tratado com crueza e até mesmo frieza, é porque não vivemos em um mundo de conto de fadas e realmente existem mulheres que decidem abortar seus filhos, seja porque são frutos de uma traição, seja porque não querem ter filhos. O fato é que isso existe e é abordado constantemente na narrativa, portanto cabe ao leitor compreender cada situação e ponderar seus julgamentos.
“Há três tipos de karma: o karma acumulado de todas as nossas vidas passadas; o karma que criamos nesta vida; e o karma que armazenamos para brotar em nossas vidas futuras.”
Além do aborto, outro tema abordado ao longo de toda a trama é a henna e como ela interfere não apenas na cultura da Índia, como também na vida conjugal de um casal, sendo o alicerce para que as relações afetivas sejam empregadas da melhor forma possível, seja para promover a fertilidade feminina ou mesmo o prazer mútuo entre os cônjuges.
A henna faz parte da cultura da Índia, assim como os pintores de henna.
“A Pintora de Henna” é um livro incrível que mostra com detalhes a sociedade indiana nos anos 50. É fato que desses anos para cá, ocorreram inúmeras mudanças no país, mas muito de sua cultura ainda é regada a preconceitos e desigualdade social.
Vale ressaltar, que a obra foi escrita em homenagem a mãe da autora, que optou por reimaginar a vida de sua progenitora caso ela possuísse a oportunidade de escolher seus caminhos.
Um comentário em “A Pintora de Henna – Alka Joshi”