Recebido em parceria com a Agência Literária Oasys Cultural.
Contos misteriosos que abordam o universo feminino de uma forma totalmente única. Aqui conhecemos personagens que possuem os mais diversos tipos de questões para lidar. Afinal, ser mulher não é fácil e contos complexos se encaixam muito bem na complexidade feminina.

“Gostaria mesmo de saber quando teríamos perdido o dom de voar… E quando teríamos nos deslocado de Lilith… Ou ela nos sobrevoaria, abençoando-nos discretamente? Em sonhos, talvez. Quando teríamos abandonado as vestes vermelhas e colocado o branco de Eva?”
Nome: Sobre o Dorso das Fêmeas
Autor: Eliane França
Páginas: 114
Editora: Penalux
“Sobre o Dorso das Fêmeas” é uma coletânea de contos que tem como principal objetivo apresentar personagens femininas e o universo em que elas estão inseridas evidenciando através de narrativas misteriosas, que possuem um tom mais fantasioso, os recatos mais íntimos do que é ser e se sentir mulher em todas as suas nuances.
Aqui, as personagens possuem os mais diversos dilemas e divagam sobre eles buscando uma explicação para seus tormentos. Os contos remetem a situações corriqueiras e comuns que vão desde o matrimônio, até mesmo a situações mais densas como o assédio sexual. O interessante, é que todas as tramas apresentadas possuem um tom mais fantástico.
E é exatamente essa pegada que mescla fantasia e mistério que torna esse um livro único e peculiar. Mesmo que possa ser observado em todas as narrativas as mais diversas nuances femininas de mulheres que lidam com dilemas pertencentes ao universo feminino, todas as histórias apresentadas possuem um ar misterioso ou mesmo fantasioso. Algo que torna o livro um tanto leve.
Essa opção de apresentar temas mais densos entrelaçados com um tom mais leve e surreal, torna o livro mais leve, já que as histórias mesclam realidade com fantasia, assim como também interpõem o factual com o irreal. E mesmo assim, cada conto apresenta de forma distinta a força da mulher frente a situações que podem ser consideradas estranhas.
Apresento a seguir os cinco contos que mais gostei:
O Noivo
Aqui conhecemos uma noiva que está a poucos minutos de oficializar o seu matrimônio. Tudo estaria lindo e perfeito naquele que poderia ser o dia mais feliz de sua vida, se não houvesse uma coisa muito estranha deixando a moça preocupada; ela não se lembra do rosto de seu futuro marido. Não apenas isso, ela simplesmente não se lembra de nada do homem com quem vai se casar.
“Assim que começasse a andar, lembraria. Ou, ainda melhor, casar-se-ia como se tivesse se apaixonado à primeira vista. Imagine que romântico. Apaixonar-se-ia ali mesmo, olhar-lhe-ia pela primeira vez a face, cheia de mesóclises e decisões. Ou, ainda melhor, assim que lhe pusesse os olhos em cima, o reconheceria.”
Essa narrativa segue uma premissa interessante e que instiga logo de cara; uma mulher que vai se casar com um homem do qual não lembra a face. Aqui temos uma breve metáfora sobre aquele “amor a primeira vista”. Afinal, será realmente possível? Ainda mais quando você vai se casar com alguém que nunca viu?
Acidente
Ao acordar, uma mulher só consegue se recordar de uma única coisa; sofreu um acidente. Ao longo do dia vamos acompanhar sua rotina e a queixa frequente de uma dor no braço. Tudo muda quando ela recebe a ligação de sua irmã, uma, duas, três vezes, questionando o mesmo e sempre dizendo que não ligou anteriormente.
“Ou sonha. Ou pensa que tem pesadelo. Ou tem pesadelo. Não tem fome. Tem vontade de tomar banho. Cheiro de sabonete. Já tomou banho. Elefante. Toca o telefone. Não tem vontade de atender. Deixa o telefone tocante até que ele para. Olha ao redor. Está em casa, e disso tem certeza.”
Eu gostei demais desse conto pois senti na pele a confusão que se fazia presente na mente da personagem que sabe que sofreu um acidente, mas não se recorda de nada e começa a ter lapsos de memória, confundindo presente com passado. Aqui, temos uma história que vai e volta, caminha e retorna. Uma espécie de ciclo vicioso muito bem construído e desenvolvido.
O Unicórnio e a Mulher do Carrasco
Nesse conto conhecemos uma jovem esposa de um carrasco. Os dois vivem em uma pequena casa situada em uma cidade igualmente pequena, o que faz com que a moça tenha de ir pegar água em uma espécie de poço local. E ela faz isso todos os dias, até que se apaixona perdidamente por um unicórnio e passa a alimentar ilusões amorosas com a criatura.
“Sentiu tudo girar, em uma confusão nunca experimentada. Ela estremeceu. Por instantes, não soube o que fazer. Sentiu-se louca. Com dúvida do que imaginara e do que vivera. Suspeitando. Da existência do carrasco. Da existência do unicórnio. Da própria existência.”
Meu favorito. Eu gostei da abordagem da paixão improvável e impossível e dos desdobramentos que esse amor irrefreável pode causar. Aqui, as consequências para a jovem são graves, afinal a aventura amorosa da mulher lhe custou um tanto caro. Uma história simples que detêm um final surpreendente que consegue fazer o queixo de qualquer leitor cair.
Ano-Novo
Aqui conhecemos uma moça que não gosta de seguir as convencionalidades impostas pela sociedade. Sendo assim, ela resolve criar uma data para comemorar o seu próprio ano-novo, afinal não acredita em superstições de azar para quem não comemora no dia. Ela é a mudança e está pronta para fazer todos embarcarem em sua desventura.
“Ela determinou: dia seis de fevereiro seria o seu Ano-Novo. Pouco convencional, chegada a invencionices, resolvera mais essa.”
Datas comemorativas pra que? Eu me diverti com a casualidade desse conto, que mostra como algumas convenções estão enraizadas dentro da nossa mente e mesmo que queiramos mudar, sempre vamos associar algo ruim aquela determinada mudança. Afinal, existem várias superstições acerca do ano-novo e não cumpri-las pode dar azar.
Lacuna
Uma mulher acorda depois de uma noite de ressaca. As lembranças recentes haviam se apagado de sua mente e resta apenas a ela refazer seus passos para entender o que aconteceu na noite passada e porque uma decisão tomada pesava tanto em seu inconsciente. Mas que decisão havia sido essa? E porque sua mente havia apagado suas lembranças?
“Teve a certeza. E a consciência de que ficava sóbria naquele instante. Naquele momento em que entendera. O cheiro, o filme. O primeiro, que transbordava sua culpa por todo o cômodo. O segundo, inspirador…”
Eu gostei de como esse conto consegue surpreender na simplicidade de narrar uma perda de memória ocasionada pela bebida, bem como da trivialidade com que a personagem realizou um ato hediondo enquanto não estava sóbria. É interessante ver a moça se lembrar aos poucos do que havia feito e de como tudo se desenrolou para aquele fatídico dia seguinte a ressaca.
“Sobre o Dorso das Fêmeas” é uma antologia que lida com as questões mais íntimas do universo feminino de uma forma totalmente diferente. Através de uma abordagem misteriosa, conhecemos histórias que remetem as dificuldades de ser mulher e de como o universo feminino tende a ser muito mais complexo do que pode parecer.