Resenha do livro "Eu sou um gato"

[Resenha] Eu sou um Gato – Natsume Soseki

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Essa é uma daquelas leituras em que nada muito espetacular ocorre, mas que mesmo assim, o leitor não quer que acabe. Até porque, acompanhar a vida de uma pessoa é sempre interessante, como uma boa fofoca. E isso, o ponto de vista desse gatinho tem muito para nos contar.

Nome: Eu sou um Gato
Autor: Natsume Soseki
Páginas: 485
Editora: Estação Liberdade

Sinopse

Perdido, o bichano que nos conta esse relato, chega em uma residência típica japonesa e acaba se acomodando por lá quando o dono do local, um professor de Inglês do Ensino Médio, o acolhe.

E assim, o Gato que não tem um nome, passa a narrar seus dias, contando as desventuras do professor tido por muitos como falido e, até mesmo, louco.

Entre divagações filosóficas e reflexões sobre como é a vida de um humano, conheceremos e acompanharemos um pouco da vida do felino, que expõe com sarcasmo e ironia a vida pacata de seu amo na Era Meiji do Japão.

Resenha do livro "Eu sou um gato"

Eu sou um gato” é aquele tipo de leitura lenta, mas que propõe inúmeras reflexões filosóficas em certas pitadas de humor. Isso porque o narrador, um felino, assume ares filosóficos ao expor com ironia e sarcasmo a vida de seu amo, descrevendo a rotina monótona e decadente que ele leva em uma casinha simples em um bairro calmo no Japão, durante a Era Meiji.

Apenas para contextualizá-los historicamente, a Era Meiji foi o período da primeira época do Império no Japão e perdurou dos anos 1868 até 1912. A trama se passa, muito provavelmente, entre os anos de 1904 e 1905, visto que no enredo é citado a Guerra Russo-Japonesa e como esta impacta a economia e a vida dos japoneses da época.

Embora esses pontos históricos específicos não tenham um impacto relevante na trama, é importante se contextualizar do que estava ocorrendo no período retratado que é o mesmo em que Soseki escreveu o livro. Nesse ponto, destaco como as notas de rodapé da edição da Estação Liberdade são de grande relevância e importância para a compreensão do texto, ainda mais para leitores iniciantes na literatura asiática.

Quanto mais observo os humanos com os quais convivo sob o mesmo teto, tanto mais me vejo obrigado a concluir que se trata de seres egoístas.

Voltando para a resenha.

E embora não seja uma obra que tenha como foco apresentar os conflitos de sua era, essa é uma trama que evidencia, de uma forma original, os costumes e a forma de pensar japonesa no início do século XX. É interessante, por vezes cômico, acompanhar esses detalhes sendo expostos de forma ácida através do olhar perspicaz, irônico e sarcástico do narrador que critica com veemência a “mediocridade” existente em pensamentos e atitudes cotidianas dos humanos.

Um ponto a ressaltar é que por mais que a trama não apresente conflitos, a escrita de Soseki, bem como o ponto de vista do felino, tornam essa uma leitura apreciativa, principalmente por ter um narrador que além de acompanhar tudo de fora, ainda julga a todos e se diverte em diversas situações.

Aqui, não temos personagens memoráveis mas todos se tornam interessantes sob o olhar astuto e julgador do bichano.

Humanos medíocres e interessantes

Porque todos os personagens que aparecem na história são comuns e sem qualquer tipo de atrativo que os faça ser diferente da maioria. Nenhum deles possuí um pano de fundo dramático com uma trama profunda a ser explorada, pelo contrário, todos possuem vidas corriqueiras em que nada especial acontece.

Desde o professor do Ensino Médio que adota o narrador, Chinno Kushami que é maltratado e humilhado por quase toda a vizinhança que o considera um fracassado louco, até mesmo sua esposa que não faz quase nada, apenas penteia o cabelo e tem alguns poucos diálogos com o marido e os amigos dele.

A curiosidade não é privilégio dos humanos. É preciso admitir que todos os gatos nascidos neste mundo são dotados desse privilégio psicológico. Um ato que se repete por mais de três vezes pode ser batizado de ‘hábito’, evoluindo para se tornar uma necessidade na vida cotidiana, algo peculiar tanto aos felinos quanto às criaturas humanas.

E que amigos.

Aqui temos um grupo de professores que beiram a decadência; Meitei é aquele tipo de professor arrogante e mentiroso que adora contar vantagem dos outros; Kangetsu é um rapaz que está estudando para obter o doutorado, mas sua tese consiste em ficar polindo bolas para deixá-las o mais redondas possíveis; Tofu é um apaixonado por poesia e literatura que tem um grupo de teatro que beira a falência; e Dokusen é um professor de filosofia que confunde provérbios, esquece do que fala e tem teorias e pensamentos filosóficos aleatórios que ninguém compreende.

Todos são personagens recorrentes no enredo e são enxergados e descritos pelo animal exatamente da forma como são. É impossível se apegar a qualquer um deles, mas acompanhar o desenrolar de suas conversas acaba sendo proveitoso, visto que a forma narrativa evoca ao leitor aquela sensação de pertencimento.

O que quero dizer com isso?
Ora, nós somos o próprio gato.

Um narrador peculiar

O bichano é sem dúvida, o ponto forte da narrativa, visto que é devido a seu ponto de vista irônico, sarcástico e ferino que o leitor acompanha de forma reflexiva e bastante cômica um recorte da vida mundana do professor Kushami, seus dissabores, suas divagações e frustrações com a vida que leva e com a carreira que escolheu para si.

Poderia ser uma história monótona, mas o ponto de vista faz toda a diferença aqui.

Isso porque, além do bichano descrever os dias de seu amo (os mais importantes e relevantes, claro), ele também descreve as suas próprias aventuras e, até mesmo, amores e amizades com outros de sua espécie. Desde uma desavença com corvos que não o deixam cruzar uma cerca, até mesmo a invasão da casa da noiva de um dos amigos de Kushami.

É assim que acompanhamos as suas próprias aventuras e nos divertimos com seus monólogos internos.

Mas como é cruel ser chamado de ‘peste’ por alguém que nunca me fez nenhum agrado em particular, apenas pelo fato de eu me levantar para ir urinar. É da natureza de todo ser humano encher-se de empáfia e ufanar-se da própria autoridade. Se não aparecer ninguém mais forte que possa maltratá-los, não sei até onde sua presunção poderá chegar. Se seu egoísmo parasse nesse nível, seria suportável, mas já tive notícias de que a depravação moral dos seres humanos é inúmeras vezes mais lamentável.

E o mais interessante do enredo é que conforme o tempo passa, o animal assume uma postura diferente, dotada de uma certa superioridade e arrogância, visto que ele começa a refletir e a filosofar de forma profunda e questionadora sobre seu próprio papel no mundo e na sociedade.

O bichano é, não apenas esperto, mas inteligente para aprender a se integrar a vida ao qual pertence, compreendendo e divagando sobre como a raça humana é medíocre em muitos aspectos. Todo esse ar de superioridade que o animal adquire é complexo de definir, afinal ele está se moldando ao meio em que vive e o que seriam as suas ponderações se não reflexos dos pensamentos de seu próprio amo?

Leitura Filosófica

Isso me leva ao ponto de expor o quanto essa é uma obra altamente filosófica, repleta de momentos de divagações em que o narrador questiona os costumes humanos e os compara aos seus próprios, levando o leitor a refletir sobre a vida que tem levado ao longo da sua própria existência.

São ponderações pertinentes que mostram o quanto o ser humano ainda tem de evoluir em seu próprio contexto. Em pouco mais de um século, parece que não progredimos nada em questão de pensamentos e atitudes, e quando o felino expõe isso com tanta ênfase em suas divagações, fica quase impossível o leitor não se ver imerso em contemplações e terminar a leitura querendo começar de novo.

Há no mundo pessoas que, mesmo agindo mal, sempre se julgam como seres de bom caráter. Convencem a si mesmas da ausência de culpa, o que é uma ingenuidade, mas por mais inocente que seja o transtorno causado a outras pessoas, não deve ser negligenciado.

Isso porque a narrativa atinge uma profundidade tão grande que é quase impossível ler uma vez e se dar por satisfeito que compreendeu tudo que ela deseja passar. Pelo contrário, é preciso reler para conseguir absorver todas as várias camadas reflexivas que o enredo propõe, compreender suas extensões e ponderar sobre o comportamento e a vida humana.

E por mais que nós do ocidente sejamos muito diferentes dos povos dos países asiáticos, vale ressaltar que a obra fala sobre o comportamento humano em si, chegando até mesmo a citar em vários momentos filósofos como Sócrates, Nietzsche, Confúcio etc. Estudiosos que buscaram compreender a complexidade da existência.

A Cultura Nipônica

Mas é claro, que o que mais chama a atenção são as observações do animal acerca da própria Cultura Japonesa, que além de riquíssima é citada e referenciada em artes, trechos de diálogos e até mesmo em passagens que exploram alguma excentricidade nipônica que difere de tudo que nós do ocidente estamos acostumados.

E uma das passagens que mais evoca a Cultura Japonesa é o capítulo em que o bichano resolve tomar um banho público e seus olhinhos perspicazes narram absolutamente tudo que ele vê, ouve, sente e cheira no local. Esse capítulo, em especial, é dotado de uma sinestesia que faz o leitor imergir na narrativa de uma forma única. Realmente, parece que conseguimos ver, ouvir e cheirar tudo que o animal descreve para nós.

Em sua vida ordinária os humanos são apenas humanos, tão comuns que se perde todo o interesse em vê-los ou ouvi-los. Porém, nos momentos em que as condições mudam, essa vida costumeira se eleva e intumesce como que tomada por um súbito efeito místico e sobrenatural, ensejando eventos singulares, estranhos, curiosos, insólitos, em resumo, acontecimentos que se transformam em um cabedal de conhecimento do ponto de vista felino.

Certamente, esse é um livro único. Seja em sua forma peculiar de narrativa; por contar a vida cotidiana de alguém comum; por trazer inúmeros questionamentos filosóficos; ou por evidenciar com devoção e paixão as peculiaridades da cultura japonesa.

Uma obra que vale a pena ser lida e conhecida por ser excêntrica.

Eu sou um gato” é um livro lento, mas que possuí particularidades que o tornam um clássico da literatura. Através do olhar irônico, sarcástico e filosófico de um felino, acompanhamos a vida de um professor decadente que existe de forma pacata, sem fazer nada muito excêntrico. E é exatamente essa calmaria e esse cotidiano que conquista a nossa atenção.

Avaliação: 5 de 5.

Uma resposta para “[Resenha] Eu sou um Gato – Natsume Soseki”.

  1. Avatar de Karina dos Anjos
    Karina dos Anjos

    Eu estou gostando muito desse livro. Ótima resenha.

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