Alerta de Gatilhos:
Violência. Morte. Abuso Sexual. Estupro Coletivo. Infanticídio. Violência contra a Mulher. Suicídio.
A Guerra de Troia contada através de uma perspectiva diferente. Aqui, é a amante de Aquiles, Briseida, quem narra os eventos que ocorreram antes da invasão grega em Troia. Uma mulher forte que fez tudo que estava a seu alcance com o intuito de sobreviver.
Nome: O Silêncio das Mulheres
Autor: Pat Barker
Páginas: 347
Editora: Excelsior
Sinopse: Quando os gregos invadem e destroem a cidade de Linerso, Briseida é oferecida como prêmio de honra para Aquiles, o grande guerreiro grego, passando a servi-lo como amante. Sem uma perspectiva de que os troianos possam vencer os gregos, a moça passa a narrar seus dias e o que presencia ao longo do tempo em que se torna cativa, sabendo que a liberdade de outrora é algo que nunca terá novamente.
“O Silêncio das mulheres” é aquele tipo de leitura que reconta, uma história que já conhecemos, através de uma visão peculiar e única. Aqui, é o protagonismo feminino que reina, assim como a delicadeza e a dor de uma mulher que para sobreviver teve que se submeter a servir ao homem que lhe tirou tudo.
Através do ponto de vista de Briseida é possível não apenas conhecer uma nova visão da clássica epopeia de Homero “Ilíada”, que coloca não apenas o herói Aquiles como um vilão, como também nos faz refletir sobre como um confronto entre nações destrói vidas, escraviza pessoas e é especialmente ruim para as mulheres. Afinal, existe um destino pior que a morte nesse contexto.
E por mais que a trama seja fictícia e narrada através do olhar delicado e poético de uma mulher, essa é uma história pesada.
“A guerra é apenas uma batalha entediante e sangrenta, composta em partes iguais de tédio e terror, mas então ressurge aquele momento luminoso, quando o estrondo da batalha some e seu corpo é uma haste conectando terra e céu.”
Isso porque a protagonista relata com descrições cruas e cruéis os massacres que presenciou enquanto estava cativa, não apenas isso, ela detalha com afinco e sofrimento os sentimentos das mulheres que a cercavam. E acredite, por mais que ler uma outra perspectiva da “Ilíada” seja magnífico, pois acrescenta e muito a obra original, ainda assim, pensar em um contexto real de conflito entre dois povos distintos é doloroso.
Aqui o leitor acompanha inúmeras crueldades perpetradas contra o sexo feminino. Mulheres que são violadas; mães que tem seus filhos mortos; jovens sendo sacrificadas aos deuses; grávidas sendo assassinadas para que não nascesse nenhum filho homem; moças sendo escravizadas por aqueles que lhes tiraram tudo.
Um confronto real entre nações não é poético e mesmo que o embate entre gregos e troianos possa ser apenas um poema épico, seu contexto não pode ter sido belo.
Uma guerra é especialmente ruim para as mulheres
Porque esse tipo de conflito, fictício ou não, é e sempre foi desastroso para o sexo feminino, não apenas o relato de Briseida expressa isso, como diversas outras obras da literatura.
As mulheres é quase sempre reservado o lugar de ser o objeto sexual dos soldados. Aquelas que vão aliviar os homens quando eles se sentirem necessitados; que vão fazer comida e lavar a roupa suja; que estão ali, prontas para servir sem negar nada.
Ler o relato da personagem faz o leitor refletir sobre o quanto esse tipo de conflito é cruel, principalmente para quem nasceu mulher.
“Uma escrava não é uma pessoa que está sendo tratada como uma coisa. Uma escrava é uma coisa, tanto na sua própria estimativa quanto na de outras pessoas.”
O interessante nisso tudo é comparar com a nossa vida real e perceber que a realidade não se distancia da ficção. Se pararmos para pesquisar sobre a Segunda Guerra Mundial, veremos exemplos que evidenciam que a escravidão sexual feminina nesses períodos era algo comum, ou seja, uma atrocidade que não é reservada e cometida apenas na antiguidade.
É triste acompanhar a protagonista e outras jovens sem ter qualquer expectativa de que as coisas podem melhorar para elas. Se os gregos vencessem, seriam suas amantes para sempre e se os troianos vencessem, elas teriam que conviver com as memórias dos tempos em que foram subjugadas e humilhadas pelos inimigos.
No fim, qualquer alternativa é tenebrosa, mas ler sobre a força de Briseida é algo que torna esse livro sensacional.
A narradora
Isso porque a personagem quer viver e sabe exatamente as consequências que deve enfrentar devido a sua escolha.
Presenciar o sofrimento e as humilhações aos quais suas conterrâneas são submetidas, ter que sorrir para os inimigos, lhes servir comida e lhes servir na cama. Nada disso é fácil, mas ela sobrevive a todas essas provações e se mostra ser muito mais que uma guerreira, afinal mesmo com todas as adversidades a moça consegue dar força as prisioneiras a sua volta, mesmo que nenhuma delas tenha voz.
Essa não é uma protagonista que vá enfrentar Aquiles ou algum guerreiro que cruze seu caminho, pelo contrário, ela faz jus a sua posição dentro do acampamento grego. Mas é exatamente ao acompanharmos seus pensamentos e percebermos suas pequenas atitudes que compreendemos a sua força.
“Na minha experiência, os homens são curiosamente cegos à agressividade nas mulheres. Eles são os guerreiros, com seus capacetes e armaduras, suas espadas e lanças, e parecem não notar nossas lutas, ou preferem não notá- las. Talvez, se percebessem que não somos as criaturas dóceis que acreditam que somos, sua paz de espírito seria perturbada?”
E por mais que Troia ainda seja conhecida apenas como a história de Aquiles, Heitor, Helena e Paris, existem inúmeras narrativas não contadas nessa epopeia.
Afinal, quantas pessoas não perderam tudo nesse embate de gregos e troianos; quantas mães não perderam filhos e os assistiram serem destroçados. Uma história de guerra, fictícia ou não, não é sobre seus supostos heróis, mas sim sobre aqueles que nunca tiveram voz para contar seus relatos.
Briseida não é aquele tipo de guerreira que vai pegar uma espada, mas é aquele tipo de mulher que luta dia e noite pela sua sobrevivência e para, mesmo que de uma forma mínima, ajudar outras tão perdidas quanto si.
Deuses
E eu queria discorrer sobre um ponto que acho bastante interessante em livros que abordam a Grécia Antiga; como a mitologia grega está presente nesse tipo de enredo.
Na trama, por vezes temos aquela sensação de que a narrativa é envolta de uma magia, aquela essência fascinante proveniente dos deuses gregos. Um exemplo é quando Aquiles passa noites e noites arrastando o cadáver de Heitor pelo acampamento e este, por obra dos deuses, está sempre intacto. É interessante perceber como a fé molda traços da história e como nós, leitores, nos afetamos por esse ponto.
“Nós vamos sobreviver: nossas músicas, nossas histórias. Eles nunca conseguirão nos esquecer. Décadas depois da morte do último homem que lutou em Troia, seus filhos se lembrarão das canções que suas mães troianas cantaram para eles. Estaremos em seus sonhos e em seus piores pesadelos também.”
Afinal, não parece estranho nesse relato, muito pelo contrário, a julgar por toda a magia que a mitologia grega provoca em nós, exemplos como o da morte de Heitor se tornam plausíveis e o leitor suspende toda a descrença que poderia ter em uma cena semelhante relatada em outro livro.
Essa magia grega é fascinante e bela.
E aqui, os deuses se fazem presente em todo o livro. Seja em um momento em que uma praga atinge o acampamento grego e a culpa recaí sobre uma maldição enviada por Apolo, ou mesmo pela presença constante da mãe de Aquiles, que era uma deusa do mar.
Tudo está ligado aos deuses e as preces que foram feitas a eles.
“O Silêncio das Mulheres” é um livro forte que reconta com riqueza de detalhes e poesia os eventos trazidos em “Ilíada” de Homero, através da perspectiva de Briseida. Uma obra que evidencia como a batalha entre gregos e troianos foi tenebrosa, especialmente para as mulheres, que tinham destinos piores do que a morte.