Alerta de Gatilhos: Violência. Tortura. Assassinato. Agressão. Mortes.
Existem livros que precisamos ter fôlego durante a leitura. Coragem para prosseguir. E estômago para finalizar. Esse é o caso dessa coletânea de contos, que surpreende o leitor ao apresentar narrativas curtas que desnudam a crueldade da mente humana, evidenciando o quanto o ser humano é suscetível a redenção a sua ancestralidade primitiva.

“Um pouco de imaginação, aliada a um senso de humor ácido, vai além e cria um inferno gelado e azul.”
Nome: A Análise da Cadela Procriadora
Autor: Márcia Arantes
Páginas: 121
Editora: Publicação Independente
“A Análise da Cadela Procriadora” não é um livro de contos recomendado para qualquer um, muito menos para pessoas sensíveis. Para passarmos por essa leitura, é essencial que o leitor tenha não apenas um estômago forte, mas também frieza para encarar tudo que as narrativas propõem.
Porque se tem uma coisa que essa coletânea consegue fazer é chocar o leitor.
Aqui temos 6 contos que vão além do clássico “loucura humana”. São histórias que refletem dores e anseios adormecidos e o quanto eles podem ser tenebrosos se forem externados dê um jeito “radical”. Narrativas curtas que detêm a capacidade de provocar inúmeros sentimentos ao leitor; justiça, medo, asco, nojo e pavor.
As tramas são fortes, isso é inegável. Pesadas e repletas de um gore que é um deleite para leitores admiradores do macabro e insólito. Entretanto, não é apenas de horror que sobrevive a coletânea. Afinal, cada um dos contos apresentados evidenciam o quanto a mente humana é frágil e passível das mais cruéis soluções para aplacar a dor e o desespero, fazendo com que uma falsa normalidade atinja o ambiente.
Porque todos os contos externam o horror que reside dentro de cada um de nós, refletindo a nossa própria natureza bestial.
A seguir, destaco um pouco de cada um dos contos da narrativa.
Guerra Fria
Um casal que tem um acordo inusitado trancado em um cofre; se um dia um deles explodir e fazer menção de discutir com o outro, aquele que não discutiu pode pegar um revólver e ceifar a vida de seu conjugue. Eis que em um fatídico dia ruim, que ambos decidem quebrar o acordo de silêncio e paz usando as suas próprias armas em uma discussão acalorada durante um jogo de cartas.
“Só queria que tudo aquilo terminasse, o que não queria dizer necessariamente em divórcio – se pudesse escolher, desejaria o casamento de volta, como era antes de todo aquele capital disponível. Quando os dois se amavam e viviam uma vida boa, confortável, sem luxos, e sem o vazio que o excesso de tempo e comodidades que podiam comprar impusera entre eles. Quando nem ele nem ela não faziam ideia do que era ter tanto dinheiro. Sentia, com tristeza, que ambos se encarceraram no clichê mais contraditório de todo os tempos: dinheiro não traz felicidade.”
Essa é uma história que mostra como a falta de diálogo pode afetar um relacionamento. Uma narrativa que evidência a ganância pelo dinheiro como o fator primordial para a destruição de um casamento de anos. Afinal, se os personagens não estivessem juntos apenas por causa do dinheiro, que teriam que dividir caso ocorresse um divórcio, talvez tudo terminasse perfeitamente bem.
Plac, Plac, Plac
Um menino na puberdade descobre os prazeres da sua mão. Infelizmente, o padrasto chato e inconveniente não lhe proporciona nenhum minuto de paz ou privacidade, não compreendendo que o jovem está passando pela transição da infância para a adolescência e que muitas coisas podem parecer confusas nesse período. É assim que algo dá muito errado.
“Era uma casa grande o suficiente para que cada morador tivesse seu próprio quarto, mas não tão grande a ponto de deixar cada um ser o completo senhor de sua privacidade.”
Além de mostrar com crueza e dureza a transição da infância para a adolescência, esse é um conto que evidencia a importância do diálogo com os filhos, principalmente acerca da sexualidade, abordando a necessidade da privacidade. Afinal, a puberdade é o tempo em que os jovens estão se descobrindo e se entendendo.
Ademais, a analogia do barulho da mão do garoto em seu sexo com o som da chuva no telhado é peculiar e criativo.
O Homem de Espuma
Uma mulher começa a se “apaixonar” pelas bolhas de sabão que são feitas em sua banheira. Mas não apenas isso; ela começa a sentir prazer com aquelas bolhas, como se houvesse um corpo ali, pronto para possuí-la. Um ser alienígena talvez? Provável. Afinal, aquela coisa não é nem um pouco humana.
“Existem coisas que deveriam permanecer encerradas nos mundos inóspitos de onde vêm, mesmo que sejam capazes de adaptar sua vivência às condições de nosso mundo. Existem fronteiras que jamais poderiam ser cruzadas, portas que nunca deveriam ser abertas; a espuma acariciando a pele de Adriana daquele jeito profano e cruel era testemunha disso.”
Quero destacar essa narrativa pelo fato dela ter me proporcionado momentos de asco. Confesso que fiquei com aquela expressão de nojo ao longo de toda a trama. É um conto repulsivo, mas, ainda assim, interessante ao apresentar um horror misturado a Ficção Científica que podemos atribuir a uma breve loucura da personagem. Nojento e Fascinante.
A Análise da Cadela Procriadora
Uma mãe leva sua filha ao consultório de um renomado psicólogo, a moça está em uma depressão profunda após a perda trágica de seu único filho. Em um silêncio intocável, o médico tem a ideia de pedir para que a jovem escreva tudo que sente. É assim que ela transcreve um conto que retrata seus sentimentos e sua própria vida, um conto deverás macabro.
“Eram comentários aleatórios sobre qualquer outra pessoa, mas ela sempre tomava para si mesma, sempre feria a si mesma a partir das palavras alheias, acreditando piamente que havia um modo de ser tudo o que esperavam que fosse, um jeito de lidar com as contradições das múltiplas definições de certo e errado que a cercavam, se dilacerando pela culpa por não encontrar esse tal feito.”
Meu favorito. O título é chamativo né? Mas não é apenas isso, existe um “que” nessa história que me fez admirá-la; a correlação feita pela autora entre uma história que se passa dentro da própria história, fazendo com que as duas narrativas se choquem e se tornem uma só. Um texto repleto de significados e metáforas, detendo um final chocante e inesperado.
Todo mundo quer ver Pedobear se Foder
Um rapaz vestido com peruca de boneca e máscara infantil começa a torturar um homem em cima de uma mesa. Como se a tortura não fosse o suficiente, tudo é transmitido ao vivo em um fórum da internet. O motivo da tortura? O homem abusava de crianças. Entre interações com os espectadores e cenas gore fortíssimas, o rapaz deseja fazer justiça com as próprias mãos.
“Você não está vendo a transmissão, mas está aqui porque também quer ver o Pedobear se foder. Todo mundo quer ver Pedobear se foder. Mesmo que, pela maioria dos comentários, os espectadores se importem muito pouco com os motivos dele estar ali.”
Esse foi o conto que menos gostei devido a toda a violência gráfica que possuí. Me incomodou demais as cenas de tortura, mesmo que eu tenha “gostado” do fim perpetrado para o pedófilo. Afinal, foi mais que merecido. Entretanto, esse é um conto que choca por toda a crueldade que apresenta, uma narrativa escrita para ser violenta. Afinal, quando vamos ter um ponto mais dramático, o conto se encera, pois o que queríamos mesmo, era ver o Pedobear se foder…
Eu te amo, Lui
Em luto, uma moça chora pela perda precoce de seu amado. Ela faria absolutamente de tudo para poder tê-lo de novo para si. Será mesmo que faria de tudo? E qual seria sua reação se o cadáver de seu amado Lui lhe dissesse que para que ele volte, ela tem de se sacrificar como alimento? Será que a moça aceitaria tamanha provação?!
“A estátua cianótica, promessa de vida eterna e libertação da morte, permaneceu observando a macabra procissão, e também não interferiu.”
Eu gostei de como essa narrativa reflete a mente de uma pessoa que está em luto, abordando como a dor de perder alguém é intensa e tenebrosa. Aqui, o horror fica a cargo da atitude desesperada tomada pela personagem para trazer seu amado de volta. Inclusive, vale mencionar que esse é um conto que aborda através do horror as consequências de uma dependência emocional, ponto muito bem evidenciado e explorado.
“A Análise da Cadela Procriadora” é uma ótima coletânea de contos para fãs de um horror mais gore, para leitores que tenham estômago forte. Não é uma coletânea para qualquer um, mas é certeza que se você gostar de horror e quiser conhecer algo inovador com narrativas que expõem os confins perturbadores da mente humana, não vai se arrepender nem um pouco da leitura.