Aviso: Essa resenha contêm Spoilers. Continue por sua conta e risco!
Um drama familiar descrito através da história de formação de um dos membros de uma família numerosa. Três gerações expostas em pouco mais de 650 páginas que retratam a trajetória de uma linhagem que tem muito a contar e a ensinar. Um livro que aborda com delicadeza e sutileza temas importantes de serem debatidos e que ainda estão em alta na nossa contemporaneidade.

“Todo homem tem uma tristeza dentro de si, e não é pecado recordar um desgosto.”
Nome: Pássaros Feridos
Autor: Colleen McCullough
Páginas: 668
Editora: Difel
Sinopse: No início do século 20, a numerosa família Cleary sobrevive em uma situação precária no interior da Nova Zelândia. Fazendeiros sem muitas condições financeiras, um lampejo de esperança de uma vida melhor surge quando o patriarca da família, Paddy, recebe a notícia de que sua única irmã, Mary, uma mulher extremamente rica que mora no interior da Austrália, não está nada bem de saúde e deseja que ele e sua família se mudem para o país a fim de poderem se tornar os novos herdeiros de sua fazenda. Entre dramas familiares, segredos revelados e uma paixão proibida e avassaladora, a família se vê em meio a secas terríveis, queimadas destruidoras e a Segunda Guerra Mundial. Entre perdas e ganhos, todos tem sua história contada e a família perdura como uma das mais ricas do interior da Austrália.
“Pássaros Feridos” é mais um daqueles raros exemplares que merece ser degustado através de uma leitura lenta e atenta. E isso é de fato necessário, até porque, é uma recomendação da própria autora, Colleen McCullough, que a história seja consumida devagar e saboreada aos poucos para que tudo que ela apresenta ao longo de suas quase 700 páginas possa fazer sentido e ter um significado ao leitor.
“Porque ele compreendia finalmente que o que ambicionara ser não era um homem. Não era um homem, nunca um homem, senão algo muito maior, que transcendia o destino do homem. Apesar disso, seu destino estava aqui, debaixo de suas mãos, palpitante e viva com ele, o seu homem. Um homem, um homem para sempre.”
Essa forma de leitura se deve exclusivamente ao fato de que aqui acompanhamos a trajetória da família Cleary, que é apresentada através de três gerações; avó, filha e neta. Mulheres que sofrem ao longo de anos, mas que demonstram ser fortes e capazes de qualquer coisa para provar seus valores em uma época machista e sexista.
E embora boa parte da narrativa foque no romance entre a herdeira dos Cleary, Meggie, com o Padre Ralph de Bricassart, as outras duas mulheres que compõem a trama, Fiona e Justine, detêm sua importância narrativa. Seja para que uma possa servir de exemplo para a filha que parece cometer os mesmos erros que a mãe, seja para a outra decidir o que fazer com a própria vida, sendo a dona de seu nariz e responsável por suas próprias decisões.
Cada mulher é essencial na história.
Ambientação e Miséria
Para começar a resenha é necessário que tenhamos um breve panorama de onde se passa a narrativa e em que época.
Bem, a trama de “Pássaros Feridos” inicia no interior da Nova Zelândia e depois toma rumos para o interior da Austrália. Além disso, a narrativa compreende o período de
Uma coisa que vale ressaltar em relação a ambientação apresentada é em como os personagens se sentem quando tem de se mudar da Nova Zelândia para a Austrália. Ambos os países são diferentes visualmente e enquanto o primeiro possuí prados esverdeados e colinas chamativas de tons carismáticos, o segundo se compreende como um país seco, terroso e quase desértico.
As descrições de ambientação são belíssimas. Mérito da autora, Colleen McCullough, que consegue fazer o leitor se sentir nos próprios países apresentados. Um daqueles livros que transportam para dentro de suas páginas. Uma verdadeira e belíssima viagem.
“Ainda havia capim nascido da cheia há muito tempo, mas este rareava pressagamente. Dia após dia os céus se toldavam e a luz se amortecia, mas não chovia. O vento cortava os pastos, uivando, lúgubre, fazia girar turbilhonantes e pardos lençóis de poeira à sua frente como chuva, atormentando a mente com imagens de água. Tão parecidos com chuva eram aqueles farrapos de poeira soprados pelo vento.”
Uma coisa que admirei em toda essa construção da ambientação, foram os contrapontos que a autora fez com a beleza local e certos momentos narrativos que fazem a trama se desenvolver. Enquanto na Nova Zelândia temos os prados esverdeados, temos também a miséria que acomete os Cleary, uma família extremamente pobre que precisa trabalhar de forma extenuante para conseguir garantir seu sustento.
Já na Austrália, esse contraponto é apresentado com a exposição entre a paisagem árida e seca do país e as queimadas aterrorizantes que assolam o lugar. O capítulo que segue toda a destruição causada pelo fogo é imensamente triste de ler, mas não deixa de ser belo devido a toda a descrição primorosa que livro carrega.
Um enorme drama familiar
Porque “Pássaros Feridos” é uma história carregada de drama que trabalha muito bem todas as nuances dramáticas apresentadas ao longo da narrativa.
Aqui conhecemos os mais diversos sofrimentos através de personagens que são diferentes entre si , e esses momentos são carregados de discussões e reflexões que podem ser feitos pelo leitor ao longo da leitura. Afinal, em que família não existem problemas a serem discutidos? Todos temos adversidades e com os Cleary não seria diferente.
“Essa é a finalidade da velhice. Dar-nos um espaço para respirar antes de morrermos, de modo que possamos ver por que fizemos o que fizemos.”
Aqui os incômodos que envolvem os personagens são apresentados das mais variadas formas e nos mais diversos momentos; seja em uma briga entre um pai e um filho devido ao ciúme pela mãe, no relacionamento abusivo vivido por uma das personagens ou mesmo nos desdobramentos que antecedem e sucedem momentos tensos da narrativa como as queimadas, as secas australianas e a Segunda Guerra Mundial.
Ou seja, os Cleary passam por muitas coisas e momentos tenebrosos. Entretanto, apesar de tudo, conseguem superar as adversidades e diferenças através da união familiar. O que faz desse, um livro que exalta e evidência com acalento a importância dos laços familiares.
O Machismo e o papel da mulher
Porque são esses pontos que fazem ‘Pássaros Feridos” acontecer.
De início, é possível notar que a trama é regada de machismo, colocando a mulher em uma posição inferior, servindo apenas como meio de procriação. Esse papel é delegado a Fiona, Fee, que ao longo de seu casamento tem mais de sete filhos com seu marido, Paddy, não importando sua idade ou o cansaço que a aflige de ter de cuidar de tantas crianças e dos afazeres domésticos.
Esse início é revoltante, mas temos uma virada de jogo com Meggie.
“Ela escondia com perfeição suas aflições. As velhas lições tinham sido bem aprendidas; o seu domínio de si mesma era fenomenal e o seu orgulho formidável.”
Sendo a protagonista da história, Meggie acaba tendo muito mais a contar ao leitor do que a própria Fee, e aqui acompanhamos uma mulher que não abaixa a cabeça e ao ver que o marido não lhe ama o suficiente, o abandona, indo viver com seus dois filhos porque eles eram essenciais em sua vida, o marido não.
E por fim, temos Justine, a filha mais velha de Meggie, ao qual é delegada toda a rebeldia de ter nascido mulher em uma época em que o sexo feminino ainda estava conquistando seus direitos, espaços e lugar no mundo. Justine é o exemplo de luta, aquela personagem que quer algo diferente para si e que corre atrás de seus desejos, uma mulher que apesar de se apaixonar, não deixa que o amor lhe tire tudo o que possa ter ou ser.
O interessante nesse ponto, é perceber como as três mulheres são ao mesmo tempo, iguais e tão diferentes. Admito, que esse é um dos pontos que torna esse livro mágico.
Meggie e seu carma
E como a narrativa gira totalmente em torno de Meggie, é imprescindível que a trama e o drama central sejam destinados a personagem.
Em “Pássaros Feridos” conhecemos uma mulher que não mede esforços ou consequências para viver seu grande e proibido amor com o Padre Ralph de Bricassart. Ambos nutrem um sentimento forte de desejo um pelo outro, mas eles sabem que isso é errado e que severas consequências podem existir desse amor. É essa colocação que faz com que a moça se case com outro homem a fim de esquecer seu verdadeiro amado. Luke O’Neil é o escolhido e Meggie não poderia ter escolhido pior.
“Era tempo de Drogheda parar. Sim, mais do que tempo. Que o ciclo se renovasse com desconhecidos. Fiz tudo isso sozinha, não posso culpar ninguém. E não me arrependo de momento algum.”
A partir do casamento de Meggie com Luke a trama apresenta uma história regada por um relacionamento abusivo, visto que Luke não está nem aí para a esposa e quando o primeiro filho deles nasce, o rapaz nem se dá ao trabalho de visitar a mulher e a criança, fato que faz com que Meggie adquira uma depressão pós-parto e tenha de se afastar por um tempo da filha.
Toda a trama do relacionamento fracassado e abusivo de Meggie com Luke culmina então na efetivação do pecado mortal entre a personagem e Ralph.
Sim, eles consumam seu amor e deles nasce um filho, Dane. Fato é, que é a partir desse momento que vemos Meggie, não apenas repetir o ciclo de sua mãe que também teve um filho fora do casamento, como também acompanhamos a moça pagar pelo seu pecado. Carma ou castigo divino, não é possível saber, mas que o destino de Dane já estava escrito, isto estava.
Sendo assim, é possível perceber que a autora faz a ligação de carma e ciclo vicioso dentro da narrativa. O interessante, é que cabe a Justine quebrar esse ciclo e não deixar que os mesmos erros familiares se reflitam na sua própria vida.
Aonde a religião se insere
E não podemos falar de “Pássaros Feridos” sem falar da religião e de como ela se insere dentro da narrativa proposta por Colleen. Porque Ralph não é apenas um personagem jogado na trama para ser padre e chocar por ter um relacionamento carnal com uma moça. Ele vai muito além disso.
Aqui, temos aquele velho exemplo de um homem que faria de tudo pela igreja. Abdica da mulher que ama e ainda “roubar” a herança dela, tudo em nome da sua tão amada religião. O Padre Ralph é egoísta e ambicioso e não existe dúvida alguma de que ele faria qualquer coisa para crescer dentro da igreja, e ele o faz.
“Seu amor a ela e seu instinto sacerdotal de oferecer-se em qualquer capacidade espiritual necessária entrava em guerra com um horror obsessivo de tornar-se inteiramente necessário a um ser humano, e de fazer que um ser humano se lhe tornasse inteiramente necessário.”
O interessante, é ver como a ambição do Padre cega-o totalmente. Afinal, ele é um herege, ele não ama a igreja e a Deus como julga amar, ele ama Meggie e a prova disso é quando ambos se entregam ao amor que os consome. Ralph não pensa duas vezes, ele se entrega a paixão, mesmo sabendo que não poderia. E talvez, somente talvez, ele pague pelos seus “pecados” através daquilo que gerou sem saber, seu filho Dane.
Porque existe toda uma questão de castigo divino que envolve o filho de Meggie e Ralph. Dane se torna um padre, Dane se torna aquilo que Meggia nunca queria que ele se tornasse. Já para Ralph, Dane é perfeito, um homem livre de quaisquer resquícios humanos que possam fazê-lo não ser totalmente devoto a Deus. O personagem é perfeito. Ele seria perfeito.
E é através da morte que o castigo divino vem. Deus tirou de Meggie o que ela tirou dele e castigou Ralph tirando de si a redenção de seus próprios pecados.
Uma narrativa de escolhas, permeada de perdas e luto
Por fim, para encerrar essa resenha extensa, vamos falar do último ponto de “Pássaros Feridos”, aquele que rege toda a narrativa, aquele que está presente ao longo das quase 700 páginas. Afinal, esse é um livro de escolhas e são elas que regem tudo que ocorre ao longo da trama.
E tudo começa com uma escolha de Fee de se entregar a paixão proibida que tinha por um homem casado, gerando seu filho Frank e sendo obrigada a se casar com Paddy. A partir desse ponto, cada escolha feita pelos integrantes da família dos Cleary os leva a seus destinos. É Meggie quem escolhe se casar com Luke e se entregar a Ralph. É Paddy quem escolhe o caminho por qual levar as ovelhas para pastar. São Jims e Patsy quem escolhem ir para a Guerra. É Frank quem decide sair de casa.
“Cada um de nós tem dentro de si alguma coisa que não pode ser negada, ainda que nos faça gritar, até o fim. Somos o que somos, e pronto. Como a velha lenda celta do pássaro com espinho no peito que canta até morrer. Porque precisa fazê-lo, porque é levado a isso. Podemos saber que vamos errar antes até de cometer o erro, mas o conhecimento de nós mesmos não afeta nem muda o resultado Cada qual entoa o seu cantozinho, convencido não vê? Criamos nossos espinhos e nunca nos detemos para avaliar o custo. A única coisa que podemos fazer é sofrer a dor e dizer intimamente que valeu a pena.”
E cada uma dessas escolhas reflete na trama. E talvez, tudo isso fique evidenciado quando por fim, no desfecho do livro, Justine não tem seu poder de escolha. A sua opção é invalidada, mas todos sabiam que ela não seria feliz com sua alternativa. E é por isso, que este é um livro que tem sim, um final feliz.
“Pássaros Feridos” é uma obra-prima da literatura australiana. Uma história que encanta por apresentar três gerações de mulheres fortes que erram e acertam e que suportaram muito para chegar aonde estão. Personagens incríveis que tem muito a ensinar ao leitor através de discussões pertinentes e situações delicadas que levam a inúmeras reflexões.
Eu gostei muito e muito interessante gosto de romances assim com pouco de drama.
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Também são os meus favoritos Juliana.
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