Alguns contos de fadas por si só conseguem passar uma sensação um tanto sombria ao leitor, principalmente por narrarem histórias que são no mínimo, esquisitas ou “erradas” se pararmos para analisar o enredo em um contexto mais amplo, entendo suas entrelinhas e problematizando algumas de suas questões. E é por isso que essas “histórias infantis” são perfeitas para que autores recriem uma narrativa mórbida e tenebrosa em cima de suas premissas originais.

“Eu estou presa aqui há cerca de 10 anos, mas eu vou me libertar e todos eles vão pagar.”
Nome: O Lado Sombrio do Era Uma Vez
Editora: Ruppell
Páginas: 159
Se tem uma coisa que eu adoro são recontos de fadas, ainda mais quando essas narrativas possuem um enredo mais macabro, repleto de bizarrices que tornam aqueles inofensivos contos infantis tenebrosos.
E é isso que encontramos em “O Lado Sombrio do Era Uma Vez”.
“Apesar disso, uma coroa sempre vai ter o peso e o poder de uma coroa, ainda mais quando uma coroa era oferecida para famílias que provavelmente nunca teriam tido a oportunidade de colocá-las sobre suas cabeças.”
Aqui, os contos possuem aquela veia de horror em suas narrativas, sendo moldados pela especulação do que poderia ter acontecido em determinado cenário de conto de fadas se o “viveram felizes para sempre” não tivesse encerrado a história.
São contos que beiram a perversão e a maldade, expondo como a crueldade humana se torna o principal alicerce para a justificativa de atos repletos de insanidade.
Uma ótima antologia para os fãs de contos de fadas que gostam de ver um lado mais sombrio dessas doces histórias infantis.
A seguir, selecionei os cinco contos que mais gostei.
Branca como a Neve
Em um reino distante e belo a tristeza impera porque a rainha não consegue ter um filho. Desesperado, o rei procura a ajuda de um mago da floresta que em troca da magia que possa fazer a rainha se tornar fértil, pede para que o rei aceite sua filha como criada. É assim, que Brianna consegue entrar no reino e anos mais tarde se tornar a madrasta tenebrosa de Branca de Neve.
“Na corte só restaram as pessoas belas, entretanto ninguém poderia ser mais bela que a própria rainha.”
O que eu mais gostei nesse conto é de que Branca de Neve é mera coadjuvante na narrativa. O foco todo vai para a Madrasta Má, que aqui além de ter uma origem para suas maldades e seu ódio pela garota, ainda consegue ter o seu “final feliz” que é tenebroso para a pobre menina, mas incrivelmente satisfatório para a bruxa.
Depois do Felizes para Sempre
O que acontece depois do “Felizes para Sempre”? É isso que Branca de Neve conta ao leitor nesse conto narrado através de seu olhar. Depois que o príncipe a despertou do sono da morte e eles se casaram, as coisas ficaram muito ruins para a princesa. Afinal, seu marido é um verdadeiro monstro e para a pobre Branca de Neve só resta uma alternativa: Vingança.
“O que acontece depois do felizes para sempre? Ah, isso nunca foi narrado antes, então cada um acaba imaginando o que quer.”
Além desse conto ser narrado em primeira pessoa pela princesa; a Branca de Neve, eu gostei de como ele tem uma abordagem sensível ao lidar com o relacionamento abusivo. A princesa se casa com um príncipe que não conhecia e seu “felizes para sempre” nunca existiu. É um conto forte, mas que apesar de estar inserido em uma narrativa fantasiosa, não está nem um pouco longe da nossa própria realidade.
Afinal, quantas princesas não se casam com monstros em nosso triste mundo real?!
A Canção Sem Nome
Aqui acompanhamos a história de um vilarejo que enfrenta uma praga de ratos que absolutamente nada consegue resolver. Até que um dia, surge no local um estranho que se diz apto a resolver o problema da infestação se lhe for oferecido comida e um local para ficar. Sem pensar duas vezes, os habitantes da vila aceitam a proposta e o rapaz se livra dos ratos rapidamente, pedindo o que é seu em troca. E assim é feito, mas aquele viajante começa a incomodar os cidadãos, afinal são eles que o sustentam… E infelizmente, o egoísmo humano e a ingratidão é bem mais forte do que ajudar um semelhante.
“Diante de um quase silêncio era possível ouvir, somente, uma melodia distante que despertava calafrios nas almas ouvintes. Uma melodia tão suave quanto um pedido de ajuda de alguém já sem força alguma. Um pedido quase silencioso, sem dono, sem denominação, pois todos deveriam saber que as águas se esquecem dos nomes dos afogados.”
Eu já acho o conto de fadas do Flautista de Hamelin tenebroso por si só. Mas quando você junta o horror com a narrativa fantasiosa, tudo fica pior ainda. Uma história que une a vingança e o egoísmo. Curta, mas totalmente assombrosa no que se propõe a apresentar e com uma grande inspiração na “história real do flautista”.
Ritual das Doze
Em um reino muito distante, o rei quer que a maldição de suas filhas seja desfeita. Afinal, toda madrugada as doze princesas saem do castelo rumo a algum lugar desconhecido, enfeitiçadas ou ainda dormindo. E quando acordam já em suas camas e com os pés sujos, elas nunca se lembram da onde estavam. É assim, que o rei oferece a mão de uma delas ao cavaleiro que descobrir o que acontece com as princesas durante a madrugada… Mas o mais estranho de tudo é que nenhum cavaleiro nunca retornou da missão.
“Doze bruxas dançavam frente a uma fogueira. Doze princesas que decidiram brincar com encantamentos sombrios e feitiços malignos. Doze espíritos as acompanhavam, ligados a elas eternamente pela magia negra, nunca podendo descansar.”
Eu gostei desse conto porque não conhecia a história original e fiquei encantada com a proposta apresentada. Bem, não encantada propriamente, até porque o final dessa história surpreende e não de forma boa. Uma narrativa curiosa que leva o leitor para confins inexplorados e apresenta uma resolução incrivelmente bizarra e medonha.
O Iblis
Aladin é um jovem pobre que ganha a vida fazendo malabares e danças na rua a fim de conseguir algum dinheiro para se sustentar. Porém um dia a vida do rapaz muda para sempre após ele seguir um grupo de príncipes em meio a um deserto. Aladin então encontra uma lâmpada dourada e um gênio se revela para ele, oferecendo-lhe três desejos.
O que será que o garoto pediria a gênio?
“Um mundo ideal nunca vai existir, para ninguém neste planeta, lhe digo sendo sincero, o ideal está preso justamente na dádiva que se limita o desejo humano À insânia de seus pensamentos, é um erro, um fracasso tentar materializar o ideal, pois a realidade já o faz falso, infiel, desleal… é impossível crer na perfeição ou no ideal de mundo, deixe de crer na redoma que o cega.”
E meu favorito. Aqui temos a história de Aladin contada de uma forma bem inusitada. Afinal, o que aconteceria se o príncipe Ali não fosse tão bondoso quanto parece ser?! O fato é, que a história de Aladin é uma das mais encantadoras, mas também uma das que mais podemos colocar vertentes de horror na narrativa, afinal um príncipe desconhecido as vezes não é tão bonzinho assim.
“O Lado Sombrio do Era Uma Vez” é uma leitura incrível para quem gosta de recontos de fadas com uma veia mais macabra. E olhando por um ângulo real, muitas das narrativas apresentadas poderiam ocorrer em nosso mundo.
Afinal, o horror é perpetuado pela perversidade humana.
Infelizmente, a antologia não está mais disponível devido ao encerramento das atividades da Editora Ruppell. Entretanto, se der sorte, você pode conseguir algum exemplar em lojas virtuais como; Shoppe, Estante Virtual e Mercado Livre.