Um livro que encanta por ser muito mais que apenas uma fantasia em volume único. Uma história que tem o poder de transportar o leitor para seu mundo mágico através da construção de mitos e lendas de um local envolto em mistérios e segredos que podem ser expostos a qualquer momento.

“Essa pessoa deve ter feito algo errado. Alguém deve ter feito algo errado. Enquanto houvesse alguém para culpar, ninguém precisaria admitir que eram impotentes.”
Nome: O Canto mais escuro da Floresta
Autora: Holly Black
Páginas: 326
Editora: Galera Record
Sinopse: A cidade de Fairfold possui seus mistérios, segredos e superstições locais. Um lugar que vive sob o domínio do “Povo” e tem plena consciência disso. Ali, várias pessoas detêm seus segredos, maldições e acordos feitos com as criaturas da floresta. No entanto, entre todas as mais absurdas histórias do lugar, uma se tem certeza ser absolutamente real; a do príncipe de chifres adormecido dentro de um caixão de vidro no meio da floresta de Carling. Tal qual, não é a surpresa da população, quando esse caixão amanhece quebrado e o “príncipe de chifres” desaparecido. É assim, que cabe aos irmãos Hazel e Ben, encontrarem o menino e descobrir o que está acontecendo naquela misteriosa cidade.
“O Canto mais Escuro da Floresta” é aquele tipo de livro que consegue, após seu desfecho, fazer o leitor sentir aquele vazio no peito e ficar órfão de uma boa história de fantasia. Talvez, o trunfo dessa narrativa esteja no fato de ser um livro único, sem continuações. Uma história com começo, meio e fim, que se encerra de forma mágica dentro do enredo proposto pela autora.
Narrada em terceira pessoa, a trama tem uma forma mágica de se moldar diante dos olhos do leitor, visto que a autora, Holly Black, usa e abusa do artifício de contar e desenvolver as lendas e mitos que povoam Fairfold. É como se o leitor adentrasse em um mundo de fantasia que está sendo contado e recontado em forma de um livro.
“Fairfold era um lugar estranho. Adormecido no meio da floresta de Carling, a floresta mal-assombrada, repleto do que o avô de Hazel chamava de Verdes e a mãe de Eles Mesmos ou o Povo do Ar.”
Esse ponto, fica evidente devido a criação de mundo exemplar exercida pela autora, que utilizando da mitologia eslava introduz em sua obra os mais diversos seres de contos de fadas. O mais incrível, é que esse mundo parece vivo e absurdamente belo diante dos olhos do leitor.
Construção de mundo
Holly Black sabe exatamente como construir um mundo repleto de perigos e mistérios a serem desvendados, tanto pelo leitor, como pelos próprios personagens.
Em “O Canto Mais Escuro da Floresta” a autora sopra vida a criaturas fantásticas que povoam o imaginário da população de Fairfold, criaturas que conseguem causar medo e angustia em nos moradores da cidade fazendo com que devido ao medo eles utilizem de amuletos mágicos para se proteger de qualquer coisa que possa lhes fazer mal.
“Ao fim de um caminho na floresta, depois de um riacho e de um tronco oco cheio de tatuzinhos de jardim e cupins, havia um caixão de vidro. Deitava-se sobre o chão e dentro dele dormia um menino que tinha chifres na cabeça e orelhas pontiagudas como facas”
A Floresta de Carling, segue os moldes de floresta encantada que não deve ser explorada. Um local que detêm seus mistérios, tanto por ser a morada do tão temido “Povo do Ar”, como por ter um exemplo de que todas as lendas e mitos que envolvem aquela distante e pacata cidade, são reais; o menino de chifres preso dentro de um caixão de vidro.
Mitos e lendas
E dentro da narrativa de “O Canto Mais escuro da Floresta”, essa utilização de mitos e lendas próprias, funciona muito bem.
E essa criação da própria mitologia do lugar é de grande relevância dentro da obra, pois serve tanto para assombrar os habitantes locais, como para situar o leitor em relação a personagens e momentos importantes que revelam um pouco do passado dos protagonistas ou da história de Fairfold. É esse cuidado na construção da ambientação que torna a trama riquíssima no que se refere a “criação de mundo”.
“Eles eram criaturas do crepúsculo, seres do amanhecer e do anoitecer, situados entre uma coisa e outra, do nem tanto e do quase, das zonas fronteiriças e das sombras.”
Fato é, que ao usar e abusar da mitologia eslava, Black nos brinda com uma fantasia única, repleta de seres fantásticos que passam a encantar e povoar o imaginário do leitor que se deixa deslumbrar pela leveza das criaturas e pelas descrições sinuosas dos palácios das fadas que vivem na floresta.
Os irmãos
Mas, não é só de fantasia que “O Canto Mais Escuro da Floresta” sobrevive. Aqui, temos um desenvolvimento exemplar dos protagonistas, dois irmãos que possuem uma das relações mais lindas que eu tive o prazer de conhecer.
Hazel e Ben são aqueles irmãos que se completam e complementam em suas próprias diferenças e que não medem esforços para se sacrificar um pelo outro. Irmãos que são acima de qualquer coisa, bons amigos.
“Não dá para salvar um lugar. Às vezes não é possível salvar nem mesmo uma pessoa.”
E esse elo fraternal é evidente em toda a narrativa. Seja pela preocupação de Ben com sua irmã mais nova, ou mesmo no segredo que Hazel esconde de seu irmão mais velho, uma confidência que pode custar a vida daqueles que ela mais ama.
Vale mencionar, que a conexão de Ben e Hazel se fortifica devido à negligência de pais jovens. A autora, faz questão de retratar a infância difícil dos personagens, que foram criados por pais inconsequentes que só vieram a amadurecer anos mais tarde. É dessa forma, que a amizade dos irmãos se fortalece, assim como o vínculo entre “leitor personagem”.
Personagem forte
E se tem uma coisa que eu preciso e muito elogiar, é em como Black conseguiu criar uma narrativa com uma protagonista adolescente que é forte e independente, sem ser aquela garota de 16 anos que vá deixar o leitor irritado por suas atitudes inconsequentes.
“O senso de justiça de uma criança às vezes pode ser cruel e absoluto. Uma criança pode matar monstros e encher-se de orgulho. Mesmo uma menina que leva as aranhas para fora em vez de matá-las; que uma vez alimentara um filhote de raposa com um conta-gotas a cada duas horas até o resgate de animais chegar… Essa mesma menina era capaz de matar e logo estar pronta para fazê-lo novamente.”
Hazel tem atitudes impensadas e infantis? De certa forma sim. Mas todas as suas ações são pensadas em resolver um problema que ela sabe que consegue contornar e solucionar, mesmo que a maioria das pessoas duvide de sua capacidade.
A garota cresceu com a vontade de ser um cavaleiro e é isso que a guia durante toda a trama, fazendo dela a heroína de sua própria história. Hazel é aquela protagonista que se salva do perigo e acaba salvando seu príncipe também, por que sim, aqui temos romance, mas esse romance em nenhum momento ofusca o brilho da garota.
Os dramas de Benjamin
Tenho que admitir que apesar de ter amado a Hazel e toda a sua força, o Benjamin se tornou meu personagem preferido da história.
Isso se deve ao fato da autora ter desenvolvido de forma exemplar o drama que o rapaz carrega por ter sido amaldiçoado por uma fada quando ainda era um bebe. Se por um lado, todos acham que sua calamidade é um “dom”, para ele, não passa de uma maldição, visto que ele não sabe se as pessoas realmente gostam dele ou se elas apenas se encantam por sua música.
“Ele escutava música, muita. Embriagava-se de música. Mas, depois que voltaram, ele sequer cantarolava junto. E nunca mais tocou.”
Além disso, vemos toda a insegurança do garoto frente a relacionamentos amorosos ou amizades, sendo Hazel a única pessoa no qual ele confia genuinamente. Ver Benjamin lutar contra seus medos e anseios e declarar seu amor para aquele que ama verdadeiramente, é lindo de acompanhar.
Outro ponto positivo para o personagem é que ao longo da narrativa ele começa a aceitar sua condição, passando a utilizar a música como uma forma de auxílio em eventuais perigos, afinal ela está nele, sendo maldição ou não, ele tem de aceitá-la como parte de sua realidade.
Severin e Jack
Pois é, mas nem tudo são flores e eu acredito que a autora pecou em não desenvolver os personagens secundários.
Vejam bem, se o leitor fica imerso e conectado com os protagonistas, Ben e Hazel, a ponto de sentir suas dores, ficar irritado com eles ou torcer para tudo acabe dando certo e que eles possam ser felizes, o mesmo não ocorre com Severin e Jack, respectivos pares românticos dos protagonistas.
“Talvez nosso amor não seja nada diferente do de vocês, talvez todo mundo ame até o amor acabar, ou talvez todo mundo ame de maneiras diferentes, tanto os humanos quanto as fadas.”
Na minha visão, a autora quis apenas colocar um romance na narrativa, algo que não influenciaria em nada se não ocorresse. Talvez esse ponto tenha um melhor impacto devido as dores amorosas de Ben, mas isso também não foi bem desenvolvido pela autora e acabou ficando em segundo plano.
Não apenas isso, mas arrisco a dizer que Ben possui um certo apego emocional a Severin, o que o faz se apaixonar pela criatura, mas não necessariamente amor. Afinal, o rapaz de chifres foi o único que o ouviu a vida inteira, mesmo que este estivesse adormecido dentro de um caixão de vidro.
“O Canto mais Escuro da Floresta” é uma fantasia deliciosa de ler. A forma narrativa apresenta uma criação de mundo única, que mostra ao leitor uma cidade repleta de lendas e mistérios a serem desvendados. O típico livro que fará o leitor se sentir órfão ao terminar a leitura.