Livro recebido em parceria com a agência literária Oasys Cultural!
Existem livros que nasceram para ser devorados e outros que existem para ser contemplados. Esse é um daqueles exemplares que o leitor deve ler sem pressa, absorvendo os detalhes e se deliciando com uma narrativa que ao mesmo tempo que confunde, beira a beleza onírica de uma escrita deliciosamente poética.

Nome: No Fundo do Oceano; Os Animais Invisíveis
Autor: Anita Deak
Páginas: 191
Editora: Reformatório
Sinopse: Conhecemos Pedro desde o seu nascimento. Um rapaz que vive no interior, aprendendo com a família sobre a vida e a morte. Um jovem, envolto em sonhos e desejos, que narra ao leitor, sua construção e desconstrução social, pessoal e política. Descrevendo sua infância, seus anos de formação e a luta pelo fim da ditadura militar no Brasil. Como a própria autora nos informa ao final do livro, Pedro não é real, mas é a essência de tantos guerrilheiros que lutaram por um país mais justo.
“No Fundo do Oceano, os animais invisíveis”, é aquele tipo de narrativa que carece de atenção, dedicação e contemplação do leitor. Tanto pelo fato da trama ser apresentada através do fluxo de consciência do protagonista, quanto pela escrita poética, repleta de sentimentos e nuances belíssimas de Anita Deak. Uma narrativa que necessita de admiração ao longo das páginas.
“Pode ser que lhe roubem uma palavra que era sua, mas essa é uma reflexão distante no tempo. Também somos paridos por meio da frase, da palavra que se fala e da que se cala, da palavra que se manda calar, do significado a impor limite à pele sintática até que se possa reduzir alguém a uma definição confortável. Para quem? Nasci-morri mil vezes nas palavras dos outros. Matei-pari tantos outros da mesma forma.”
Ler essa obra rápido não é uma opção. Já que, a narrativa possuí uma intensa carga emocional, se tornando um livro complexo em seu início. As inúmeras metáforas e os momentos em que o protagonista vagueia pelo passado e o mescla com seu presente, tornam essa uma leitura desafiante.
Entretanto, por mais que seja um livro difícil, não deve ser o tipo de narrativa que afaste o leitor. Afinal, existem tantas camadas nessa obra, que é impossível não indicá-lo. Principalmente para leitores ávidos por narrativas que apresentem um viés histórico, difundindo no enredo um certo período problemático do Brasil; A ditadura militar.
A Ditadura Militar
O ponto chave de “No fundo do oceano, os animais invisíveis”, é o enredo que envolve a transição política do protagonista, Pedro. O rapaz, cresce em um seio familiar conservador, aprendendo com a família sua forma de pensar e entender o mundo e a política que rege o país. Ver Pedro, um garoto que veio da roça, se tornar universitário, se formar em letras e ter uma transição política do conservadorismo para o liberalismo, é gratificante.
E é exatamente através do estudo e das diversas palestras que assiste, que o rapaz molda sua forma de pensar e se torna, junto com seu irmão, Ernesto, um guerrilheiro. Vale ressaltar, que a obra se passa em meados dos anos 70, o auge da ditadura militar no Brasil. E, essa ditadura é totalmente presente na trama; seja nos pensamentos de Pedro, ou nas vezes em que ele foi preso e cruelmente torturado por militares, cenas chocantes que fazem o leitor sentir raiva de tanta injustiça.
“Eu quero subir, preciso subir, o coronel me afoga novamente na tina e, ah, essa neblina, que frio, cavalinho, que frio, na tina grande dá pra pensar e não precisa tapar o nariz, agora a gente vai abrir o olho bem devagar, olha o gato, cavalinho!, aqui é a casa dele? Oi, gato, vem falar comigo, eu sou seu amigo. O gato n~ão é gato, na cara dele um bico de galinha. Meu pai diz que é pra eu não chorar, não chora, não chora, não chora, mas aqui na água ele nunca vai saber.”
Deak, consegue transmitir através dos pensamentos desconexos e poéticos de Pedro, todo o horror de ser capturado e duramente torturado, perdendo seu direito a expressar suas opiniões. E, embora a própria autora deixe claro no final da narrativa que seu personagem, não é inspirado ou baseado em nenhum guerrilheiro, é fácil para o leitor pensar que realmente existiu um Pedro que foi guerrilheiro e cruelmente torturado, e isso se deve a humanização do personagem.
Pedro, Vive
Uma das coisas mais belas de “No fundo do oceano, os animais invisíveis”, é como a autora consegue fazer seu protagonista parecer vivo. Pedro, é real e disso não resta nenhuma dúvida. Toda a sua humanidade e realidade é comprovada através da exploração narrativa de seus sentimentos. Emoções duras, severas e belas que são expostas ao leitor ao longo da trama. O personagem, se desnuda, mostrando a complexidade de sua mente. Uma mente puramente, humana.
“Como transgredia meu corpo por não caber em propósitos aos quais se apegam agora, correr por estar atrasado, correr para perder alguns quilos, hoje eu submeto meus pés a finalidades precárias e me esqueço de que ele soube ser feliz antigamente.”
Toda essa exposição de sentimentos, é característica fundamental na obra, o que faz o leitor se sentir imerso na narrativa. Esse, foi um dos pontos que mais admirei na escrita de Deak, o fato de como ela consegue trazer ao leitor, não apenas as sensações e emoções de Pedro, mas também suas dores, os cheiros que sente e o que escuta. É tão vívido, que faz o leitor escutar galhos partindo por pisadas do lado de fora da janela.
Essa é uma característica imensamente peculiar, mas que em sua singularidade, transforma esse livro em uma obra de arte contemplativa. A narrativa difere das outras, tanto pelo detalhamento das inúmeras emoções que compõem os pensamentos do protagonista, como pela escrita absurdamente poética e bela que a autora entrega.
Narrativa tão bela quanto o Oceano
Definindo esse livro em algumas palavras, ele fica assim: Poético. Necessário. Incomum. Três características que fazem de “No fundo do Oceano, os animais invisíveis” um dos melhores livros que li esse ano e fatalmente, uma leitura inesquecível ao leitor.
Vamos aos três detalhes.
Poético porque Deak sabe como criar frases incrivelmente belas ao apresentar determinados contextos ao leitor. Vagueando pelo passado e presente de Pedro, mostrando sua forma de ver o mundo, sua forma de pensar. Apresentando os medos, anseios e receios do personagem que se entrega de corpo e alma à narrativa.
“Toda face é máscara, assim como o corpo. A apenas um corpo, o seu, se prendem os homens, tomam por ele a si mesmos, identificados à matéria com que vieram ao mundo. Morre a matéria, morre o homem. Se pudesse se reconhecer nas realidades outras, naquilo que não lhe parece seu – e, no entanto, é –, o homem subjugaria a morte por morar em todas as coisas. Emprestaria-se às penas dos pássaros e ao voo longo dos peixes. Movendo-se somente dentro de si, o corpo-homem-limite submete a experiência.”
Incomum devido a forma narrativa que não possuí pontuações de diálogos. O fluxo de consciência constante que permeia as páginas da narrativa. O fato da autora mesclar com maestria Passado e Presente, narrador personagem e narrador onisciente onipresente. Fatos, que tornam essa uma narrativa belamente incomum.
Necessário, para que os erros do passado não voltem a se repetir. Para que nós, brasileiros, possamos continuar tendo nossos direitos de liberdade de expressão. Necessário, para que dias melhores possam vir, mesmo que no momento tudo pareça friamente escuro. Ler sobre as torturas realizadas, faz o leitor refletir sobre a violência e o quanto ela é supérflua.
Sem capítulos
Uma das coisas que admirei em “No fundo do Oceano, os animais invisíveis”, foi o fato do livro não ter capítulos, mas sim, uma divisão um pouco mais sutil que se faz presente ao longo do enredo.
Mesmo, que a obra não apresente os capítulos para contar a história, temos o que posso chamar de “divisão da vida do personagem“. Cada parte do livro conta um momento da história de Pedro. O início, foca exclusivamente em desenvolver a infância do personagem, apresentando sua relação com a família, seu primeiro amor e a sua forma inicial de pensar.
“A revolução é um prato de mandioca e ninguém pode salvar esse país de merda, não somos bons, nenhum de nós, brancos, índios, negros, mulatos, somos todos pecadores, indefensáveis.”
O segundo momento, apresenta toda a mudança de ares e perspectivas do personagem quando este se muda para a cidade a fim de estudar. Entra para a universidade, se forma e conhece uma moça que o apresenta ao mundo da política. É nesse momento, que Pedro molda a pessoa que é, construindo seu caráter e seus valores como pessoa.
Por fim, essa desconstrução de sua ideologia política inicial, culmina no alistamento do jovem à guerrilha, enfrentando a repressão da ditadura militar, participando de eventos, sendo preso, torturado, libertado e, por fim, perseguido. Nesse ponto, ele e seus companheiros iniciam um dos movimentos mais longos contra a ditadura. Movimento este, baseado em fatos.
Passado, Presente, Passado, Presente
E terminando, devo mencionar que a autora consegue sobrepor o passado e o presente com maestria, sem causar estranheza ao leitor que depois de algum tempo, se acostuma com as peculiaridades de sua narrativa.
“Anos depois, percebo que a vida continua igual, só mudam os pastos. Pedir passagem é sinal de fraqueza, você precisa se colocar, plantar sua imagem até que ela vença a resistência da memória alheia. O que haveria se fôssemos ah-além? Se deixássemos para lá? A chuva, chu-va, ela sempre cai uma hora pra revelar nossos amontoados úmidos de solidão.”
Nesse ponto, o leitor descobre que Deak não apenas sobrepõe o passado e o presente de Pedro, como alterna a narrativa em pontos específicos. Oras o leitor acompanha as nuances da mente conturbada do protagonista, oras acompanha o desenrolar de alguns eventos sob o olhar de um narrador onisciente e onipresente que sabe de tudo e tudo vê.
Pontos que certamente, tornam esse, um livro riquíssimo em qualidade e peculiaridade narrativa.
“No fundo do Oceano, os animais invisíveis” é acima de tudo, uma experiência de leitura. Um livro que fará o leitor sair de sua zona de conforto. Aquele tipo de narrativa que deve ser lida aos poucos, degustada e contemplada. Uma história que embora tenha pouco mais de 190 páginas, tem muito a contar sobre nosso passado, carregando uma narrativa dramática que apresenta de forma dolorosa e genuína, os horrores da ditadura militar.