Talvez nunca mais um País – Flávio P. Oliveira

Uma distopia nacional narrada em fluxo de pensamento. Se por um lado podemos achar a narrativa confusa em seu início conturbado, por outro, ao finalizar a leitura, o leitor certamente terá aquele sentimento de completude, já que toda a teia de aranha tem suas pontas unidas sem deixar qualquer furo ou especulação.


“Devemos enfrentar os nossos medos, e não perdê-los. Um bom medo deve ser cultivado, podado e jamais colhido. Os medos são edificantes; alguns fundamentais.”

Nome: Talvez Nunca Mais um País
Autor: Flávio P. Oliveira
Editora: Delirium
Páginas: 237


Sinopse: Um belo dia, o narrador da história é surpreendido por um rapaz armado em sua casa, é a partir desse ponto, que sua história emerge em um fluxo continuo de pensamentos quem mesclam sua infância, adolescência e um passado não muito distante em que o mundo foi dizimado por dois vírus distintos. Enquanto um consumiu as reservas de petróleo, o outro, a doença de Hoosbardo consumiu a pele das pessoas. É em meio a esse cenário caótico que o homem cresce e sobrevive, imune ao vírus que destrói parte da humanidade, sendo mantido pelo governo que através de seu sangue, prolonga a vida daqueles que consideram merecer viver.

Quanto ao rapaz com a arma apontada em sua têmpora, será que até o final do livro ele aperta o gatilho?


Talvez nunca mais um país” é aquele tipo de livro que quando começamos a ler, apenas conseguimos pensar no quão confuso ele pode ser. No entanto, é pertinente mencionar que mesmo ele parecendo totalmente caótico em seu início, a trama se amarra durante o desenrolar do enredo, provando ser um livro complexo, muito bem intrincado, e desenvolvido. Correlacionando todas as ramificações de sua teia, sem deixar furos no enredo.

Narrada em fluxo de consciência pelo protagonista, aqui conhecemos e acompanhamos sua história em passagens que descrevem seu passado distante, passado recente, presente recente e presente atual. O personagem se recorda e descreve eventos aleatórios, aparentemente sem sentidos, que ocorreram em sua infância e adolescência. Apesar desses pontos parecerem desconexos, o personagem correlaciona esses eventos com o seu presente recente, alguns dias antes do conflito central da narrativa ocorrer.

” A arte morreu, tudo vem morrendo… Correção: nada morre, e nada vive hoje em dia. Bom, as pessoas morrem, até meu possível assassino. Quando digo que ninguém morre é por que não passamos de sombras habitando minúsculos mundos inseridos dentro de um devastado planeta.”

Talvez nunca mais um país“, apesar de ser uma história imensamente confusa de início, se molda através da narrativa, conectando aos poucos os pontos soltos que pareciam que nunca iriam se fundir. Além disso, a trama distópica, apresenta grandes críticas políticas e sociais, vigentes e pertinentes de serem discutidas e debatidas em nosso contexto atual.

Críticas sociais e políticas

As considerações apresentadas durante todo o enredo são notáveis. Vão desde à um parecer impetuoso contra um governo autoritário que dividiu a população, segregando-a entre pessoas saudáveis, doentes, ricos e pobres. Até uma opinião mais profunda que remete ao fato do governo aparentar mais interesse em salvar ricos e personalidades dotadas de certa influência, do que pobres.

Esses questionamentos permeiam toda a obra, fazendo o leitor inquirir a todo instante em relação a leitura e ao caráter apresentado pelos personagens, sobretudo pelo narrador que possuí uma índole um tanto duvidosa.

“O homem separou diferentes desde sempre, é apenas mais uma segregação, porém há um diferencial: noventa por cento da população mundial aprovou a setorização. Da setorização até a divisão territorial em pequenos estados independentes foi um pulo.”

O protagonista, é aquele tipo de homem que por ser privilegiado do governo, acaba roubando da regência. E apesar de não achar uma atitude de todo “errada”; roubo é roubo; mesmo que tenha uma “finalidade” benevolente. Fato é que o narrador da história não é uma pessoa tão aprazível assim, já que ele utiliza o dinheiro ganho em contrabando, em seu benefício, não se importando com as pessoas à sua volta.

E essa pode ser considerada a grande ponderação da trama. Afinal, quando a sociedade é segregada entre ricos e pobres, saudáveis e enfermos, fica nítido a carga de preconceito que encontramos durante a narrativa. Sobretudo, aquele preconceito pelas pessoas que contraíram a doença fictícia que dizimou o mundo da história. O próprio protagonista tem atitudes extremas que o fazem ser um personagem no mínimo questionável.

Infelizmente, a obra se mistura com a realidade. Afinal, quantas vezes não acabamos ignorando aquela pessoa mais necessitada?

Semelhança com o Coronavírus

E falando na doença da que permeia o livro, qualquer semelhança com a nossa atual situação é mera coincidência. Em resumo, depois de ler tantas passagens que me faziam lembrar do coronavírus e da nossa infeliz realidade, olhei a ficha técnica do livro e pasmem: ele foi escrito em 2015.

Leia esse trecho e perceba o quanto isso pode ser encarado como “profético“:

“A televisão ligada no jornal da manhã, um repórter menciona a morte de dezenas durante a noite e a possibilidade de um vírus transmitido pelo ar. Indica, em seguida que devemos usar máscara ao sair de casa. No trabalho, quase todos estão usando máscaras.”

A doença de Hoosbardo, responsável por dizimar a população do livro, é bem diferente do coronavírus. Seu principal contraste é que ela é uma doença de pele, que devido à algumas descrições me transmitiu a sensação de que se assemelha à Lepra. E em sua maior coincidência com a COVID-19, destaco que a Hoosbardo é transmitida pelo ar e de pessoa para pessoa.

Se pararmos para pensar, mais uma vez a realidade e ficção se chocam e se tornam um só. Se eu fosse uma teórica da conspiração, ousaria dizer que algumas obras podem não ter sido proféticas, mas sim o carma necessário para se criar as mazelas mundiais. Ou seja, a arte é nada mais que um espelho do futuro

Mas, isso é apenas um devaneio, uma firula sem qualquer comprovação científica.

Fluxo de Pensamento

Talvez a narrativa seja uma das coisas que torna esse um livro assustadoramente único.

Essa foi a primeira vez que li um livro inteiramente narrado em fluxo de consciência, o que faz sentido o meu estranhamento inicial, bem como a confusão que se fazia em minha mente enquanto eu fazia a leitura e me perdia em pontos específicos por confundir parágrafos e diálogos.

Não. O livro não possuí qualquer pontuação que inicie um diálogo, o que pode tornar a leitura difícil e arrastada em alguns pontos.

Esse tipo de narrativa é caracterizada por uma espécie de monólogo do personagem, em que muitas das convenções de escritas são ignoradas para dar mais verossimilhança e realidade aos pensamentos aleatórios do narrador. Um tipo de escrita que requer paciência, afinal muitas das coisas se misturam e se complementam, mas sem uma ordem definida.

“Uma boa caminhada, uma ajuda aos pensamentos. Sou daqueles caminhantes contra o vento em desconexos (às vezes absurdos) pensamentos. Andar me faz traz inspiração e desanuvia meus sentidos. Minha avó me acorda cedo, vamos ao dentista. Todos os homens são iguais. A errônea afirmativa ao lado deveria ser escrita assim: Todos os homens são iguais quando vão ao dentista.”

Esse recurso é utilizado em toda obra de “Talvez nunca mais um país” e embora possa parecer um tanto confusa ou monótona em grande parte do enredo, afirmo que essa é uma forma de aproximar o leitor do narrador, mesmo que ele não cause empatia. Aqui, tudo se correlaciona em algum momento, mesmo que seja próximo ao final.

Em suma, uma história incrível, mas que requer muita paciência.


Talvez Nunca Mais Um País” não é um livro para ser lido em uma sentada só. Ele é um daqueles raros exemplares que deve ser degustado, digerido e por fim refletido. Uma história que começa confusa, mas que conecta seus pontos aos poucos, através de uma trama repleta de críticas pertinentes a nossa sociedade atual. E mesmo concordando que talvez não seja o momento mais oportuno de conhecer a história, visto sua semelhança com a situação que enfrentamos, é um livro que recomendo para leitores fãs de distopias e que gostem de críticas ácidas à política.


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Você pode comprar a edição pelo próprio site da editora, deixo aqui o LINK para a versão física da obra.

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5 comentários em “Talvez nunca mais um País – Flávio P. Oliveira

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