Uma fábula moderna que ao mesmo tempo que possui nuances bem trabalhadas e interessantes, se torna absurdamente esquisita. Um livro que tenta apresentar ao longo de suas quase 250 páginas, os incômodos e dores vividos por animais encarcerados em jaulas de zoológicos ou circos. Infelizmente, o discurso não convence e apenas chama a atenção para episódios esporádicos, narrados de forma fabulosa que a principio causa uma confusão ao leitor.

Nome: Memórias de um Urso-Polar
Autor: Yoko Tawada
Editora: Todavia
Páginas: 246
Sinopse: Divido em três partes passadas em tempos distintos, conhecemos as histórias de Mama Lia, Toska e Knut. Três ursos-polares da mesma linhagem, nascidos e criados em cativeiros com um único proposito; entreter humanos. Três ursos que ao mesmo tempo são tão iguais e tão diferentes entre si.
“Memórias de um Urso-polar” é aquele tipo de livro que tem boas ideias e discussões, mas que não convence. Apesar da narrativa bem construída e desenvolvida, a trama se revela confusa em diversos momentos. Isso, porque não fica exatamente claro se a autora queria apresentar a realidade de animais mantidos em cativeiros através de suas próprias perspectivas, ou humanizá-los de alguma forma.
“Todos os membros da minha plateia podiam andar sobre duas pernas e andar em um triciclo. Mesmo assim, eles me olhavam como se eu estivesse realizando um milagre.”
Apesar da trama ser muito bem escrita, o discurso ambientalista que permeia a obra, não convence o leitor. Isso porque, tirando a primeira parte do livro que apresenta descrições de cenas pesadas que retratam o treinamento de um urso para o circo, as duas partes seguintes seguem uma premissa oposta, colocando os animais como “endeusadores” dos humanos.
Narrado boa parte em primeira pessoa, através da perspectiva dos ursos-polares, a história é interessante, possuindo um enredo que cativa o leitor, gerando empatia e instigando a leitura. Além disso, a autora aborda temas pertinentes como; o aquecimento global e a exploração e os maus tratos aos animais. Porém, o debate se torna superficial, não sendo forte o suficiente para convencer o leitor até o fim da leitura.
Uma “Zootopia” Japonesa
Uma das coisas que mais me incomodou durante a leitura de “Memórias de um Urso Polar” (e deixando bem claro que incomodou a MIM, talvez você, leitor não se incomode com isso), foi o fato de que em diversos momentos da narrativa eu não conseguia levar a obra a sério, imaginando cenas pitorescas e animadas que se assemelhavam ao filme “Zootopia” da Disney ou mesmo a animação “Madagascar” da DreamWorks.
Esse pensamento me ocorreu principalmente na primeira parte da história, aonde o leitor é praticamente induzido a acreditar que animais e humanos coexistem em harmonia social em um mesmo universo. Mas, coexistem de forma que é possível encontrar um urso-polar andando no supermercado.
“Durante o processo em que um animal é transformado em não animal ou um humano é transformado em um não humano, a memória se perde, e essa perda é o personagem principal.”
Logo na primeira parte conhecemos Mama-Lia, uma ursa que está trabalhando na escrita de sua biografia. Já na parte dois acompanhamos a história da ursa Toska, só que narrada através da perspectiva de Úrsula, sua treinadora, que conta mais sobre sua vida pessoal do que sobre o animal que está treinando.
E, talvez o ponto mais intragável do livro seja a forma como Toska idolatra Úrsula. E isso, francamente, não me desceu. Afinal, o que era para ser um livro com nuances e apoios ambientais, bem como conscientização referente ao aquecimento global, acabou sendo uma história que aparentemente tenta “defender” que os tratadores e treinadores de animais não são tão cruéis assim.
Knut e a solidão do encarceramento
Mas, nem tudo está perdido. A terceira parte do livro, é especialmente bela e triste. Narrando de forma profunda e melancólica a trágica história do ursinho Knut. A parte que faz o livro inteiro valer a pena.
Tawada se inspirou na história real do ursinho Knut, filho da ursa Toska que abandonou o filhote após seu nascimento. Ao apresentar a narrativa inteiramente pelos olhos do filhote abandonado, a autora aproxima o personagem do leitor. É fácil se apegar e gostar do ursinho que enxerga a vida de forma inocente e apesar de ser um animal selvagem, tem laços de amor com os humanos que cuidam dele. E é devido a esse laço que a história de Knut se torna trágica.
Além das duas espécies serem completamente diferentes e com o passar do tempo terem que se separar, é evidente durante a narrativa que os tratores apenas usam o animal como uma forma de gerar receita para o zoológico. Afinal, quem não adora um ursinho fofo que faz gracinhas frente a câmera?
Enquanto o amor que Knut passa a nutrir por seus tratadores é real, o inverso não acontece, é apenas uma questão de lucros…
No fim, após um acidente fazer com que os tratadores tenham que se afastar definitivamente de Knut, ele passa a viver sozinho em sua jaula acompanhado apenas de um ursinho de pelúcia, sempre esperando alguém para conversar, alguém que consiga entendê-lo. É doloroso acompanhar a solidão do ursinho até o final de sua vida. Sua trajetória se encerra, triste e precoce. Ele morre sozinho e deprimido enjaulado em um zoológico sem nunca vê a liberdade. Morrendo sem pertencer a lugar nenhum de verdade.
Polo Norte e o pertencimento a lugar nenhum
Existem dois pontos que gostaria muito de destacar sobre “Memórias de um Urso Polar“, a primeira se refere a como a ancestralidade está ligada a geração de ursos que nos é apresentada ao longo da trama.
Mama Lia, quando narra sua história, conta que era uma ursa que fazia shows em circos e que aprendeu (sob tortura) a fazer inúmeros números, como dançar, andar de monociclo, usar saia e ficar sobre duas patas. Sua filha Toska, segue a mesma veia artística da mãe e se torna uma ursa “atriz” em teatros, até ser “contratada” por um circo para fazer alguns shows. E por fim, Knut, neto de Mama Lia e filho de Toska, se torna a atração de um zoológico e aprende a fazer inúmeros truques para entreter humanos.
“Não se pode repreender uma criança por não contar aos pais o que ocupa e incomoda seu coração. É uma tentativa infantil de se tornar adulto. Por outro lado, os pais preferem mentir para seus filhos a revelar suas fraquezas.”
Note, como a “veia artística” foi passada até o neto. Por mais que isso não seja tão bem desenvolvido na trama, é notável que a autora quis trazer esse ponto de “ancestralidade” o que tornaria a história bem interessante se tivesse sido melhor abordado. Além disso vale notar que Tawada também insere em todas as três narrativas, o “Polo Norte” como lugar de origem e ideal de lar para os ursos.
Em diversos momentos, todos se referem ao Polo Norte e sentem a necessidade de conhecer seu lugar de origem, mesmo que seja apenas um sonho e esse desejo não se torne real, infelizmente. Visto que, o Polo Norte ao ser mencionado por todos os três ursos soa muito mais como uma espécie de Utopia do que realidade e nenhum deles chegou realmente a ver a sua casa um dia.
Espetáculo para os humanos
Apesar de não serem muitas as cenas descritas no livro sobre o tratamento dado aos animais, principalmente em circos e zoológicos, elas existem e são por si só, perturbadoras. Cenas descritas com detalhes sutis que conseguem sem muito esforço tornar a narrativa pesada.
“Você pode pensar que nasci com talentos acrobáticos, que treinei muito para aperfeiçoar minhas habilidades e, então, mostrei orgulhosa os resultados para minha plateia. Essa interpretação é completamente falsa. Nunca escolhi uma profissão; minha vocação nem sequer foi discutida.”
Apesar da história permear entre a fábula e a realidade. A descrição da crueldade exercida pela mente humana em rituais que envolvem o treinamentos de animais selvagens para o entretenimento humano é chocante e cruel. E embora, as cenas não sejam explicitas, a narrativa pelo olhar inocente de um urso torna a leitura densa.
Ler como a primeira ursa explica como o choque ou a quentura no piso de sua jaula a fazia erguer o corpo, ficando apenas equilibrada sobre as patas traseiras é chocante, cruel e triste. É pesado pensarmos que esse tipo de tortura até alguns anos atrás existia e que animais inocentes sofriam apenas para se tornarem a atração perfeita para o entretenimento humano.
“Memórias de um Urso Polar” é um livro diferente que não vai agradar a todo leitor. É uma fábula que possui seus pontos fortes e fracos, sendo um bom livro que consegue fazer o leitor refletir, se comover e se intrigar com as metáforas apresentadas ao longo do enredo. Vale a pena a leitura, mas sem grandes expectativas.
Olá Aryana, foi bom ter lido sua resenha. Acho que não havia lido nenhuma desse livro, exceto a minha (que não reli hoje, por absoluta falta de tempo). Permita-me sugerir que leia minhas impressões, porque tive uma visão diferente desse livro. Li esse livro em junho de 2019, justamente depois de voltar de Berlim, senão teria ido ao zoo (Gosto muito de visitá-los, estive em vários no Brasil e no mundo, e nessa viagem conheci o de Viena, um dos mais antigos do mundo. Mas isso não importa). Desejo que consiga realizar seu sonho!
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Olá Guilherme!
Irei ler sua resenha sim, é sempre bom comparar e conhecer visões diferentes, afinal um livro mexe principalmente com emoções e cada leitor por ser único tem emoções e experiências diferentes na leitura.
Obrigada pela visita ^^
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