Estranhamente perturbador aos moldes dos clássicos romances de horror góticos da literatura europeia. A novela de Álvares de Azevedo é um prato cheio para fãs do gênero, contendo doses exacerbadas de um horror recheado com uma prosa poética que não quebra o clima tenso de repulsa que paira durante a leitura.

como as faces belas da virgem morta, não podeis crer que ele morra?”
Nome: Noite na taverna
Autor: Álvares de Azevedo
Editora: Editorial Sol 90
Páginas: 98
Sinopse: Quando em uma noite cinco amigos que se reúnem para beber em uma taverna, cada um deles possuí uma trágica e assombrosa história de amor proibido para narrar. Histórias tenebrosas que envolvem “paixão” e “morte” em narrativas que relatam os medos mais profundos e desejos mais sórdidos do ser humano.
É difícil falar sobre “Noite na Taverna”, sobretudo, porque é um livro que consegue em menos de 100 páginas causar um sentimento de asco profundo no leitor, principalmente devido a forma “doentia” com que são narrados acontecimentos como: estupro, canibalismo, adultério e etc. Atos hediondos narrados de forma poética por personagens sem o mínimo de decência ou escrúpulos.
Apesar da obra ser “indigesta” para muitos leitores, é pertinente mencionar a importância de Álvares de Azevedo na literatura nacional e não esquecermos que o livro foi escrito em 1855, ou seja possui mais de 150 anos. O choque e terror causado pela leitura da obra é expresso com base no que hoje em dia temos em mente como “horror”.
“Uns a meio queimados se atiravam a água, outros com os membros esfolados e a pele a despegar-se-lhes do corpo nadavam ainda entre dores horríveis e morriam torcendo-se em maldições.”
Se há 150 anos simplesmente a sociedade se via assombrada por seres inimagináveis como; vampiros, fantasmas ou coisas insólitas e sem explicação. Hoje em dia é fácil notar que o público em geral tende a não se assombrar mais com histórias de fantasmas ou do desconhecido. Existe é claro uma exceção em que pouquíssimas pessoas ainda sentem um calafrio na espinha quando ouvem esses termos e essas pessoas costumam passar bem longe de obras do tipo.
O essencial é ter em mente que em “Noite na taverna” existe um medo implícito que o leitor pode encarar sem qualquer receio e que se traduz na frase “O que o ser humano é capaz de fazer”.
Monstros reais
A novela de Álvares de Azevedo é composta por breves relatos de cinco amigos que se encontram em uma taverna, cada qual, conta uma história que possuí sempre dois elementos em comum, a paixão e a morte. No entanto, todas as narrativas são absurdamente tenebrosas e escatológicas, descritas de forma poética e onírica, pelos personagens que sem qualquer pudor tratam os acontecimentos como situações corriqueiras.
A falta de empatia, senso e ética dos protagonistas enquanto narram suas “desventuras amorosas” produzem um choque em qualquer leitor, visto que todas as histórias apresentadas tratam de temas torpes ao extremo para serem consideradas comuns ou “românticas”.
“É um requintar de gozo blasfemo que mescla o sacrilégio à convulsão do amor, o beijo lascivo à embriaguez da crença!”
Relatos que retratam o pior do ser humano, abordando com um lirismo poético atos hediondos como necrofilia, estupro, incesto, assassinato. Histórias que deixam um gosto amargo na boca, e provocam no leitor uma aversão imensa, principalmente quando percebemos o quanto os temas abordados em algum momento foram tratados como “comuns” e “triviais” em um passado não muito distante.
“Noite na Taverna” se passa em um período em que os assuntos apresentados na narrativa eram ocorrências comuns, corriqueiras e infelizmente impunes. É interessante percebemos que em obras que retratam o século XIX, as mulheres eram tidas como uma espécie de “objeto” que servia apenas como esposa ou para “sexo”.
Os cinco contos narrados na novela de Álvaro de Azevedo, retrata a dura realidade feminina das mulheres que viveram no século XIX e que eram expostas a todo tipo de violações, que naquele período ficavam impunes.
Uma hedionda história repleta de beleza poética
Apesar dos relatos bárbaros serem narrados com uma paixão vil e doentia, é pertinente apontar a beleza contida no texto construído por Álvaro de Azevedo, visto que todas as histórias, por mais assombrosas e asquerosas que sejam, são capazes de transmitir ao leitor um sentimento profundo de repulsa unido a admiração, visto que a beleza lírica exposta na composição do texto é notável e até mesmo bela.
“Era como uma vida nova que nascia cheia de desejos, quando eu cria que todos eles eram mortos como crianças afogadas em sangue ao nascer.”
Essa dualidade de sentimentos é ressaltada devido a belíssima construção narrativa ofertada por Álvaro de Azevedo que possuiu uma grande influência literária de escritores e poetas góticos, como Lorde Byron e Alfred de Musset. É exatamente por conta dessa influência, que “Noite na Taverna” é carregados de uma prosa poética que beira a melancolia, apresentando ao leitor uma conexão mórbida entre o amor e a morte.
É pertinente termos em mente que devido à natureza lírica do texto, a leitura é em muitos momentos difícil e até mesmo tediosa para leitores acostumados a obras que tenham uma narrativa mais direta. Digo então, que para os fãs de Edgar Allan Poe e Lord Byron, esse é um texto riquíssimo que chega a beirar a perfeição.
Vale lembrar que Álvaro é um importante escritor nacional e sua prosa singular é uma relíquia para nossa literatura, visto que a mesma possui aquele dom excêntrico de conquistar os leitores mais clássicos que admiram e degustam com ferocidade uma boa obra construída com ares poéticos.
A construção narrativa e a influência sobre o real
Antes de começar a fazer essa resenha, pesquisei um pouco sobre o livro e acredito que seja pertinente mencionar a estrutura narrativa que compõe o texto, visto que este é um ponto de suma relevância a ser apontado e mencionado para que o contexto de toda a obra seja compreendido com eficiência.
Primeiro, é necessário termos em mente que a história se passa em uma única noite, poucas horas, e o cenário que sustenta a obra é uma taverna aonde cinco amigos se encontram bêbados enquanto narram algumas desventuras amorosas e assombrosas que vivenciaram.
Com isso em mente, podemos destacar alguns pontos relevantes quanto aos relatos apresentados pelos personagens que compõem o enredo.
Um dos primeiros pontos a ser mencionado é a credibilidade e veracidade de cada uma das histórias expostas pelos homens. Com exceção do último conto, narrado pelo personagem Johan, todos os relatos podem muito bem terem sido inventados apenas para elevar o ego dos presentes, impressionar ou mesmo causar inveja aos amigos que se encontravam ao redor da mesa.
“Quando chegamos aos trinta anos e o suor das agonias nos grisalhou os cabelos antes do tempo e murcharam, como nossas faces, as nossas esperanças, oscilamos entre o passado visionário e este amanhã do velho, gelado e ermo despido como um cadáver que se banha antes de dar a sepultura! Miséria! Loucura!”
Tirando alguns personagens que tem a autenticidade da história provada por um objeto ou uma testemunha, não existe um fator concreto que possa contribuir para que eles provem a genuinidade de seus causos. Sendo assim, é compreensível que tanto o leitor, quanto a roda de amigos bêbados duvidem de alguns dos relatos apresentados.
Quanto ao segundo ponto a ser evidenciado, diz respeito ao quanto essas histórias foram “enfeitadas” durante aquela noite de bebedeira.
Vejam bem, cada um dos homens presentes naquela mesa de bar enche sua história de floreios gloriosos e detalhes sórdidos ou poéticos. No entanto, o que nós leitores devemos levar em consideração é que estamos tendo acesso aos contos apenas pela visão do narrador o que torna cada um dos relatos duvidosos. Isso é evidenciado e comprovado quando chegamos ao último capítulo do livro, composto por um clímax fenomenal que presenteia o leitor com um final digno de uma peça trágica aos moldes de Shakespeare.
A tragédia de Romeu e Julieta
Devo finalizar a resenha dizendo que eu particularmente gostei de conhecer essa assombrosa novela de Álvaro de Azevedo. Muito embora seja um texto que possui inúmeros defeitos no que tange o contexto atual em que vivemos.
Entretanto, devo elencar que o que me conquistou nessa história foi o amargo final que o autor construiu na narrativa poeticamente trágica. Um final digno de uma boa trama de vingança, o que por sinal devo admitir que muito me agradou, visto que, durante a leitura eu apenas conseguia sentir asco e raiva daquele grupo de bêbados que se gabavam de suas obsessões amorosas doentias como se fossem normais e belas.
Ao ler o último conto que compõe a obra é inevitável sentirmos uma pontada de melancolia e tristeza devido ao lamentável desfecho narrado, no entanto, é possível ao mesmo tempo sentirmos um gostinho delicioso em nosso paladar, provocado pelo amargo e gratificante sabor da vingança. Particularmente me senti renovada ao ler o final, embora também tenha me sentido vazia e comovida.
A vingança pode não ser o melhor caminho para uma solução, mas a vingança as vezes é interessante quando ouvimos o lado que a faz.
Uma crítica?
Se transfigurarmos a obra de Álvaro para nossos dias atuais, podemos interpretar que o último conto apresentado em “Noite na Taverna” pode ser compreendido como uma certa crítica do autor ao comportamento libertino de homens do século XIX, e as impunidades que ocorriam na época.
Em todos os relatos apresentados, é nítido a impunidade frente aos atos repugnantes praticados pelos homens que compõem a mesa de bar, comportamentos que no contexto social apresentado na novela, manchavam a honra de mulheres, que acabavam fadadas a prostituição, mendicância ou mesmo suicídio.
É cruel e asqueroso quando percebemos que os personagens de “Noite na Taverna” sequer pensavam nas consequências de seus atos e ao se reunirem naquela mesa de bar estavam muito mais preocupados em se mostrar como verdadeiros conquistadores aos seus companheiros.
Nesse ponto, reflito se o que Álvaro de Azevedo queria causar em seu leitor era esse choque de realidade, exibindo atos cruéis e desumanos comuns na sociedade em que ele viveu e o quanto aqueles atos desgraçavam vidas.
“Noite na Taverna” é uma novela poética extremamente bem escrita, a prosa em linguagem lírica assombra por nos apresentar terrores reais praticados por crimes hediondos que ficaram impunes. Uma obra inspirada na literatura de horror gótico dos clássicos europeus, que surpreende ao causar no leitor uma repulsa significativa por apresentar através de uma linguagem belíssima histórias horrendas que exibem o lado mais vil do ser humano.
Boa resenha. Estou sumido do WP. Valeu pela lembrança! No último conto fiquei em dúvida se havia algo de sobrenatural na situação. Demorei para ler este livro, afinal, os professores da escola só vendem a parte água com açúcar do romantismo, saber que o horror e o terror da época pertencia a mesma escola literária foi uma novidade recente.
Rodrigo Rosas Campos
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Verdade. Os professores nunca ressaltam a importância do texto ou passam de explicações superfíciais. Ler as entrelinhas e ler com o coração torna sempre a leitura mais agradável.
Sim, no último conto eu também fiquei confusa em relação a ter ou não algo de sobrenatural na história, tanto que até reli para poder confirmar e na minha perspectiva a história se mantém pé no chão, sem apelar para o misticismo.
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Incrível, eu li um dos contos dessa novela, Solfieri, porém a parte poética foi a que mais me chamou a atenção, confesso que essa resenha me abriu os olhos para muitas coisas. E ao contrário de muitos quero sim, conhecer todo o conteúdo do livro. Foi extremamente fantástica essa resenha, me sinto renovada, e mais atenta aos próximos livros que irei ler. OBRIGADA ♥️
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Conheça sim que vale bastante a pena. Apesar de tudo que mencionei na resenha, não deixo de ressaltar que essa é um obra importantíssima da nossa literatura. Álvares de Azevedo tem um jeito particularmente peculiar de escrever, mais ao mesmo tempo um jeito único que se molda e se inspira em grandes clássicos europeus.
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