Livro cedido em parceria com a Agência Literária: Oasis Cultural.
Um livro intrigante que nos faz pensar sobre como uma guerra é capaz de afetar de formas absurdamente negativas e cruéis a vida das pessoas. Uma história que reflete sobre escolhas erradas que levam a uma súbita decadência moral e ética e que reflete a imagem de pessoas que nunca mudam.

Nome: O filho de Osum
Autor: Decio Zylbersztajn
Editora: Reformatório
Nota: 5,0
Páginas: 185
Sinopse: Durante a Segunda Guerra Mundial, a Holanda foi um dos países invadidos pelos alemães nazistas e dessa forma muitas famílias de origem judaica fugiam para o Brasil em busca de refúgio. Jos Litvak era um rebelde que ajudava pessoas a fugirem e se refugiarem não apenas no Brasil, mas em outros países considerados seguros e é a história dele que vamos acompanhar. Um homem movido pela ganância.
“O filho de Osum” é uma daquelas narrativas que o título consegue enganar até um certo ponto o leitor. Como sugere, a obra vai sim versar com a religião iorubá, no entanto esse não é o foco principal do enredo, mas sim, desenvolver e dialogar sobre a caminhada de personagens que tiveram suas vidas mudadas perante o cenário devastador causado pela Segunda Guerra Mundial, sobretudo na Holanda, após o país ser invadido pelos nazistas alemães.
A narrativa é fluida, agradável e bastante filosófica, dialogando com o leitor em diversos pontos sobre como eventos que ocorrem em nossas vidas geralmente nos mudam por completo. A história é um drama que se passa nas décadas de 40 e 50 tendo como cenário principal o bairro de Bom Retiro em São Paulo, retratando a vida dos imigrantes e refugiados holandeses que não tinham quaisquer perspectivas.
“A minha vida continua naufragada também. Não é possível imaginar que o homem possa ter feito o que fez. Percebo que as ideologias causam cegueira primeiro, seguidas por radicalismos que depois se auto justificam. Também percebo que os radicais demoram para compreender a natureza dos desvios morais. Aqueles que personificam as ideias tendem a manter uma burrice monolítica. Só o tempo poderá ajudar a compreender os discursos mentirosos dos líderes populistas.”
Em “O filho de Osum” somos apresentados a um leque de pessoas que foram completamente destroçados pelo destino e pelas pessoas em quem confiaram. Conseguiremos entende-los, odiá-los, sentir pena, asco, ódio ou mesmo nojo, afinal são personagens humanos que possuem dilemas, medos, egoísmos, vaidades e orgulhos. É notável que o autor fez um trabalho fenomenal em nos apresentar personagens tão quebrados e defeituosos pelas consequências da vida que é impossível não sentir qualquer empatia por eles. São pessoas comuns repletas de cicatrizes profundas e incuráveis.
Um vilão?
Talvez o vilão principal da trama seja as consequências da Segunda Guerra e como ela afetou a vida de diversas pessoas. No entanto, se tivermos que ter um vilão personificado para essa narrativa, sem sombras de dúvida o posto é ocupado com orgulho pelo protagonista Jos Litvak.
Em toda a trama, a única coisa que nós leitores conseguiremos sentir por ele é desprezo. E isso não é um exagero. O personagem é um narcisista, se acha o dono do mundo já que a sua boa aparência consegue lhe render bons contatos, apreço de mulheres e claro confiança e é a partir dessa elegância e charme que em vários momentos temos o caráter de Jos exposto de uma forma tão crua e violenta que praticamente não acreditamos em suas ações ou falas mesquinhas.
É através de sua boa lábia unida aos seus encantos que o malandro consegue aplicar os mais diversos golpes em pessoas que confiaram nele, consegue os mais absurdos contratos e quando vê que algo está realmente dando errado, ele simplesmente abandona o barco a própria sorte, traindo seus próprios ideais. É esse comportamento totalmente egoísta que expõe seu caráter e a sua total falta de ética e empatia acaba por lhe garantir bons inimigos. E mesmo a ponto de ser totalmente destruído, Jos não se abala e não mostra qualquer tipo de remorso, ele se mantém firme e frio, como uma das pedras preciosas que ele trafica para fora do Brasil.
Sem dúvidas, a construção da avareza de Jos é um dos pontos mais positivos do livro. O autor acerta em cheio ao nos entregar um personagem egoísta que faria absolutamente de tudo por dinheiro. Um personagem ganancioso que mesmo após perder quase que tudo ainda ostenta em seus lábios um sorriso de desdém. É fácil odiar Jos. Mas também é fácil compreender que ele é o retrato de uma humanidade que cada vez se perde mais em um antro de mesquinhez.
Se tem o vilão…
Jos não é o único personagem intrigante dessa jornada. “O filho de Osum” possui uma camada fabulosamente potente de personagens extremamente bem desenvolvidos, que se movem por diversos motivos, vingança, sonhos, esperança. Se por um lado temos um personagem arrogante movido pela ganância. Por outro, temos uma mulher movida por um desejo intrínseco de vingança.
Anna foi uma mulher que Jos ajudou a sair da Holanda quando os nazistas alemães invadiram o país. Havia na sua saída para o Brasil, a promessa de um noivo e uma vida boa e estabilizada. Algo em que ela acreditou e por algum momento sonhou que pudesse ser verdade, no entanto, naquela viagem de navio sua vida mudou por completo e para ela ao chegar ao Brasil não havia nada de estável e o único caminho que lhe restou foi o da prostituição.
“Mesmo os que têm família por perto, mesmo os que conseguiram o dinheiro que nunca tiveram antes, são refugiados. Refugiados, andarilhos, errantes, vendendo e comprando tudo o que pode ser vendido ou comprado. Vendendo o vento, a esperança e eu, vendendo o meu corpo, por que não? Puta, curve sim, mas sobrevivente.”
Anos mais tarde Anna acolhe Jos em seu bordel, agora, ela é uma cafetina dona de um grande bordel em Bom Retiro e é dessa forma que a mulher começa a orquestrar uma forma de poder se vingar daquele que lhe prometeu um mundo diferente, mas apenas contribuiu para destruir sua vida.
E é usando a própria ganância de Jos contra ele mesmo que Anna triunfa de forma esplêndida sobre ele. Apesar de seu desenvolvimento ser relativamente curto, durante toda a narrativa é possível ver seu amadurecimento e sua construção. Ela não quis se vingar, apenas queria dar uma lição em Jos e mostrar como é ruim confiar e ser passado para trás.
A filosofia dos rebeldes
Apesar da guerra ficar em segundo plano durante a trama, ela está presente e é o que move todo o enredo. Já que foi exatamente essa guerra que destruiu famílias, separou pessoas e devastou vários países, enlouquecendo aqueles que um dia lutaram com unhas e dentes contra um governo ditador que destruiu os sonhos de uma nação.
Cornelius é sem dúvida um dos personagens mais profundos da obra e embora tenha pouquíssima participação, sua participação tem o potencial de enriquecer a alma e a mente de forma formidável.
“Cartas frágeis como a história de Cornelius, o homem em busca da utopia, do lugar perfeito, da fraternidade sem limites.”
O personagem é um homem convicto, que acredita em seus ideais, não se deixando abater perante as dificuldades. É alguém que deseja ver seu país livre e que não mede esforços para lutar por aquilo em que acredita. E infelizmente, como muitos “rebeldes” acabou encontrando um trágico fim. Ele é a essência de um povo que luta sem descanso até a morte para defender seus ideais e se libertar das amarras de um governo cruel e opressor.
Cornelius foi agredido e torturado como muitos foram, mas nunca perdeu a fé ou a esperança na libertação e após perder quase totalmente a sua sanidade ele finalmente recompensado e libertado, podendo ver seu país se reerguer das cinzas. E mesmo com a alma e o corpo marcados severamente por cicatrizes incuráveis ele seguiu em frente, apesar de saber que nunca mais seria aquele que foi um dia. Afinal é isso que faz uma guerra não é mesmo? Nos muda completamente.
O filho de Osum
O título da obra é sem dúvida uma grande cereja acrescentada ao bolo. Jos é o que se pode chamar de filho de Osum, um orixá da religião iorubá, há no personagem muito da essência de Oxum, já que ela é considerada a senhora da beleza estando ligada às riquezas espirituais e materiais da vida, à vaidade e sendo sumamente conhecida como dona de pedras preciosas. O malandro Jos é retratado como um homem de beleza considerável que carrega consigo um pente para manter os cabelos baixos, traficante de pedras preciosas e que não mede esforços para enriquecer.
Um detalhe importantíssimo, é que Osum ou Oxum é quase sempre retratada segurando um espelho dourado. Existe uma passagem na história em que Jos se depara com um espelho que reflete sua imagem, o que pode ser interpretado como uma espécie de metáfora que simboliza sua descendência espiritual. Essa interpretação é teoricamente comprovada pela personagem Preta Lina, a filha de Osum, que é a única que vê no rapaz uma certa bondade adormecida.
“Pra que mais dinheiro? Pedras preciosas são coisas boas para oferenda de Oxum. Ela gosta de usar colares bonitos, afora isso, não servem para nada.”
Apesar de não ser o foco do livro, a religião iorubá está presente na obra, mas não o tempo inteiro, é sutil e sua inclusão não é forçada, é muito mais ligada a uma fé e crença espiritual. Uma forma de talvez justificar os atos de Jos tem durante a narrativa, dando ao personagem uma escolha, escolha essa que não sabemos se ele fez ou não.
“O Filho de Osum” é um livro incrível. Seja por toda a sua construção narrativa e histórica dos fatos apresentados ou pela primorosa e hábil construção dos personagens que compõem o enredo. É uma obra que narra de uma forma suave e ao mesmo tempo cruel, como a guerra transforma as pessoas e apresenta o lado mais sujo e mesquinho do ser humano e como as pessoas podem ser tão inescrupulosas a ponto de cometer atos de pura ganância por apenas uma questão material. É um livro intenso que no fim nos faz questionar e refletir se Jos de alguma forma considerou tudo o que aconteceu e mudou nem que seja um pouco a sua forma de viver a vida.
Que resenha incrível!
Já tinha visto a capa do livro no Skoob, mas ela de fato engana bastante. O famoso “não devemos julgar o livro pela capa”, né? hahahaha Não imaginei que o livro estaria oscilando para o gênero de romance histórico. Amo esse tipo de livro!
Pena que olhei na Amazon e a obra só está disponível em livro físico 😦 Ando preferindo e-books
Enfim, parabéns pela resenha 😀
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Muito obrigada pelo elogio!
E sim, é um livro que engana mesmo pela capa e pelo título, mas é uma obra encantadora com uma baita história e um contexto histórico fenomenal por trás.
Fico feliz que tenha gostado da resenha!
Uma pena você só estar lendo e-book, mas se um dia quiser optar por um bom livro físico, não deixa de conferir “O filho de Osum”, vale muito a pena! ^^
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Querida Aryana, valeu a pena esperar por uma resenha tão bem escrita e uma análise tão bacana do livro. Você é excelente leitora e é uma honra ter um livro resenhado em seu blog. Muito obrigada,
Valéria Martins – Oasys Cultural
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Fico tão feliz em ler suas críticas positivas!
Isso me engrandece e muito como profissional e me da forças para continuar seguindo nesse caminho.
A leitura é algo que faço desde nova e tenho sempre em mente que todo livro possui muitas coisas a ensinar!
Abraços.
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