É difícil falar desse livro sem focar exclusivamente no quanto as mulheres de Cabul tiveram que sofrer para poder durante um período de puro terror se reerguer e assim conseguirem conquistar um pequeno espaço em meio a um todo que havia sido totalmente vetado a elas.

testemunhá-los.
Nome: A costureira de Khair Khana
Autor: Gayle Tzemach Lemmon
Editora: Seoman
Páginas: 214
Notas: 4,5
Sinopse: Quando o governo Talibã toma o controle da cidade de Cabul, capital do Afeganistão, a jovem Kamila Sidiq e seus 5 irmãos veem suas vidas mudarem da água para o vinho. Agora em um governo ditador que impede que mulheres realizem qualquer função fora de casa, Kamila se vê como “chefe de família” após seus pais e seu irmão mais velho serem forçados a abandonar a cidade. Dessa forma, ela encontra um jeito de poder sustentar sua família e usando agulhas e linhas cria uma oficina de costura em sua casa. Uma atitude que muda para sempre a vida dela e de outras mulheres.
“A costureira de Khair Khana” é um daqueles livros que você termina basicamente babando nas páginas com os olhos brilhando e querendo um pouco mais de toda aquela inspiração na sua vida. Apesar de ser uma narrativa pesada pois trata muito veemente da submissão e opressão aos quais eram submetidas as mulheres do Afeganistão durante o regime político do Talibã, a história foca muito mais em nos mostrar toda a superação de uma família frente aos impactos causados pelo regime, tudo isso abordado através da história inspiradora de uma moça chamada Kamila Sidiqi.
O livro é uma reportagem feita pela jornalista Gayle Tzemach Lemmon que após conhecer a história de Kamila, assumiu que o mundo precisava conhecer também e optou por escrever um livro sobre as mulheres que deram a volta por cima durante o governo Talibã e de uma forma magnifica conseguiram empreender e gerar empregos e sustentos para várias famílias afegãs que se viam sob a penumbra de dias ruins que não possuíam data e nem hora para terminar.
“Aguentar firme. Não sair de casa. E rezar. Era tudo que restava fazer à maioria dos cidadãos de Cabul.”
A narrativa é extremamente fluida e intensa nos deixando sem folego durante alguns momentos específicos, já que é através de um narrador em terceira pessoa que acompanhamos as dificuldades e a lutas que Kamila e outras mulheres enfrentam durante o governo. Diversas passagens do livro nos deixam terrivelmente apreensivos, pois Lemmon faz questão de nos lembrar que ali naquele regime, as mulheres não possuem direito a nada e em vários pontos presenciamos alguma cena cruel seja de espancamento, interrogatório ou mesmo prisão.
Parece distopia…
Lemmon não esconde debaixo do tapete a dura crueldade que assolou o país durante o final dos anos 90 e mostra com uma riqueza de detalhes tenebrosos como esse foi um período intenso e cabuloso. Em vários momentos da narrativa acompanhamos o árduo patrulhamento das ruas da cidade e as severas punições que eram afligidos aqueles que não cumprissem com as ordens do líder do regime. As cenas são chocantes e mostram sem pudor a crueldade imposta pelos soldados o que nos deixa chocados e ao mesmo tempo enraivecidos de perceber como um governo pode ser tão medíocre a ponto de proibir coisas banais e punir com requintes de crueldade seus conterrâneos.
“Por anos, o Afeganistão vinha vivendo como uma nação pária, totalmente esquecida pelo resto do mundo. Agora, não se falava mais no rádio de qualquer outro lugar.”
É triste pensar que esse livro não é uma mera ficção ou distopia. É triste perceber que essa situação ocorreu há menos de 25 anos. É triste entender que ainda existem pessoas que acreditam que nós mulheres não devemos ter qualquer direito, seja de escolha ou mesmo de liberdade. É tenebroso quando percebemos que o que está sendo narrado em “A costureira de Khair Khana” é bastante semelhante com uma distopia de horror que poderia ser uma ficção, mas que neste caso é a mais pura e dolorosa realidade.
O governo Talibã
Atuando em países do Oriente Médio como o Afeganistão e Paquistão, o Talibã é um grupo político radical formado por muçulmanos extremistas que possuí uma política estritamente rigorosa que segue de forma rígida conceitos aplicados no livro do Alcorão. É um governo opressor que atinge principalmente as mulheres pois as proíbe de fazer coisas triviais como trabalhar e falar com homens que não pertençam a suas famílias. Além disso, o regime é conhecido por suas técnicas de guerrilha e principalmente homens-bombas, utilizados para conseguir tomar o poder de um determinado local.
“A costureira de Khair Khana” se passa exatamente entre os anos de 1996 e 2001, anos em que o Talibã conseguiu destituir o antigo governo Mujahedins do poder e tomar totalmente a cidade de Cabul, capital do Afeganistão. O regime perdurou até o ano de 2001, quando após os ataques ocorridos em 11 de setembro, as forças americanas conseguiram invadir o país. Apesar de ter sido destituído do governo, a força Talibã ainda persiste e tem como principal objetivo expulsar os invasores americanos e reaver os locais que haviam outrora sido dominados por eles.
Uma história de superação
É um fato incontestável que a história de Kamila é inspiradora. Em meio a um período tenebroso em que as mulheres sofreram um repúdio absurdo e uma opressão aterradora, não podendo fazer qualquer tipo de atividade sob pena de serem presas e brutalmente torturadas pelo Talibã, a jovem Kamila não se deixa abalar e após a partida desesperada de seus pais e vendo-se tendo que assumir as rédeas de sua família e cuidar de seu irmão e suas irmãs mais novas, ela assume então a sua posição de líder e começa a bolar uma forma de ganhar dinheiro sem ter que se arriscar. É assim, dessa forma e totalmente sob pressão que ela resolve transformar a sala de estar de sua casa em uma oficina de costura.
“Se eu criar minha própria empresa, poderei treinar muitas pessoas e elas irão iniciar seus próprios negócios. E então, talvez elas inspirem um número ainda maior de pessoas a fazer a mesma coisa, e assim, sucessivamente. Eu sei que este negócio pode fazer uma grande diferença para este país.”
Tendo fé e esperança de que as coisas vão melhorar, Kamila consegue não apenas gerar uma fonte de renda para sua própria família, como também para várias outras famílias que se viam tão perdidas no escuro quanto ela e que passaram por fim a ter a coragem necessária para trabalhar e aprender durante os anos ruins que passaram sob os olhos do Talibã. É dessa forma que essas mulheres conseguiram superar e acreditar que um dia teriam a chance de ver seu país liberto. Kamila por si só se tornou muito mais que a chefe de uma oficina de costura, ela se tornou uma líder destemida, a heroína de sua nação.
Empoderamento feminino
Por fim, podemos dizer que “A costureira de Khair Khana” é um relato que foca muito mais em mostrar a força do empoderamento feminino e da ascensão feminina. Kamila inspirou as pessoas a não desistirem frente as dificuldades que apareciam e ajudou várias mulheres a se superarem e se tornarem exímias guerreiras frente a um governo extremista e totalmente ditatorial que as excluía completamente da sociedade. Um governo machista.
Ela não apenas empreendeu, como também mostrou o quanto um governo não pode aprisionar todas as mulheres de um país se apenas uma delas estiver disposta a lutar. Sua coragem, perseverança, espirituosidade não apenas proporcionou emprego para várias mulheres que se viram abandonadas a própria sorte, como também inspirou para que essas mesmas mulheres percebessem que são muito mais fortes e destemidas do que pensavam.
“Se as mulheres tiverem seu próprio salário para contribuir com o sustento da família, elas passarão a participar das tomadas de decisões. Seus irmãos, maridos e todos de suas famílias terão respeito por elas.”
“A costureira de Khair Khana” é um livro inspirador. Não é um livro histórico ou que vá tratar especificamente do governo Talibã. É um livro que possui como finalidade mostrar que sempre existe um caminho de luz, mesmo quando a escuridão é completa. Aqui o governo Talibã fica em segundo plano, afinal esse não é o foco principal da narrativa. O foco é a história de Kamila, é mostrar como uma única pessoa pode fazer a diferença e enaltecer o quanto Kamila é importante para várias mulheres que não tinham quaisquer perspectivas futuras. Ela é, sem sombra de dúvida, uma verdadeira heroína.